A armadilha da gratuidade universal
Ideias
2018-09-21 às 06h00
Só por uma espécie de pecado original, irresgatável por procedimento algum conhecido; só por uma espécie de ausência divina, sem João que anuncie um verdadeiro Redentor. Tomo intróito de inspiração bíblica, como a humano que confie na Celestial Providência convém, para discorrer sobre escandalosa carestia de alojamento, ao menos em dois segmentos da população nacional.
Acredito que muitos de nós o tenham gravado para memória corrente. Vai para dois meses, ouvíamos a Elidérico Viegas, presidente da corporação de hoteleiros e afins algarvios, a confissão alarmada de que o allgarve se debateria com crónica falta de mão-de-obra, pelos custos exorbitantes da habitação, no fundo, que artista da bandeja ou cama feita e banheira limpa não ganharia o suficiente para pagar as paredes entre as quais repousasse no meio de jornadas de trabalho. Que as casinhas módicas, dizia, declinavam em extinção insustível, ante o avanço da conversão prostituinte do «lar doce lar» de família miúda, em palco de amores e acertos camuflados de curta semana. Igual obstáculo apresentavam outros protagonistas, para justificar, em acúmulo, a propalada falta de clínicos na região, e mais ganham os da bata, por comparação com os do laçarote ou do avental de camareira. Ouvíamos dias atrás, também, queixarem-se os reitores da ausência de quartos para os estudantes deslocados. Quanto mais não custa tecto sobre cama, do que um já de si iníquo sistema de propinas! Amigo seja eu de toda a bestinha que o Criador deitou sobre a Terra, e Ele lá saberá as razões, mas logo que a sanguessuga entra em conflito com os interesses amplos de um País, está bom de ver que governante atento a deveria mandar chupar em teta de vaca morta.
Foge-se à Universidade, finta-se a Labuta, por não haver T0 decente que não pese na carteira, de pais, ou de quem acabe gastando mais do que poupa, fruto de oito, dez ou doze horas de trabalho? Querem o quê, os nossos amigos do topo da pirâmide: que aluguemos cama a terças, e que nos estiquemos por turno, para que pronto entre parceiro alternado de lençóis?
Tenho por lição vívida da História que o Socialismo não resolveu o problema da habitação, de modo que do Capitalismo não espero bondade que lhe seja intrinsecamente estranha. Mas não há como evitar a pergunta: e não evoluem, as mentalidades? E não se alteram, as práticas? Não compete ao Estado a organização e implementação de políticas que redundem na satisfação simultânea das necessidades? Simultânea, porque por junto satisfeitas as carências sociais e individuais! Por que sorte de fatalidade se pactua com negócios espúrios, como o da habitação? Quem saiba ver, corra os olhos pelo País: não encontramos de pé, ainda, garbosos, prédios de habitação social erigidos no tempo da «outra senhora»? E não assistimos à ruína de fachadas erguidas, com pompa, pelos tribunos da Democracia? Um prédio bem levantado é como um Ferrari – degrada apenas por maus-tratos e, estimado, ganha patine e conserva valor. Em suma, construir bem, é construir para três ou quatro vidas. Diria que fica em conta, mesmo em Estado de proverbiais parcos recursos.
Em defesa de negócio seguro e rentável, talvez sejam os bancos que entravam o avanço de políticas sociais para a habitação. Mal não lhes quero, por não abdicarem de puxar a brasa a seu carapau. Agora que nos digam, os que elegemos, que é dos interesses dos pequenos que tratam, uma vez chegados ao gabinete: aí já eu não estou pelos ajustes! Patinam governos sucessivos com a habitação, com a regressão demográfica, e com uma série de assuntos que têm a ver com a estabilidade básica dos cidadãos. E é preciso que sublinhemos repetidamente estas questões, por muito que nos acenem com embustes.
Mais do que assinar papéis, governar é programar, calendarizar, prever; é criar soluções de progresso e bem-estar. Governar está muito para lá do sound bite de circunstância, como uma qualquer diminuição transitória de IRS para incentivar ao regresso os objectores de consciência dos nossos tempos. Tenho para mim que a pessoa se constrói de dentro para fora, sendo que a habitação, o «seu espaço», é parte integrante da condição interna. De modo que, quanto neste domínio não se negue a vulgar indivíduo, pois em prejuízo da sociedade acaba por vir por ricochete. Têm, os portugueses, o duplo pecado original – o do feitio acomodatício, e o de serem governados por míopes de inclinação. Perante o que não há, o que não chega, o que não se faz, resta-nos esperar por Messias que nos redima, já que de ordinário filho de homem não vem a solução. E assim se protela o sebastianismo.
19 Fevereiro 2025
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