A Cruz (qual calvário) das Convertidas
Ideias
2016-06-20 às 06h00
Por estes dias, andaremos distraídos com o S. João e com a Seleção Portuguesa. Por cá, as redações regionais vão certamente dar destaque às festividades são joaninas e os media nacionais apostarão tudo neste Portugal-Hungria. Cada um à sua dimensão, trata-se certamente de eventos importantes, mas esta semana há um outro acontecimento que se sobrepõe a tudo: o referendo no Reino Unido. Os resultados ditarão o futuro de todos nós. Não são dias muito tranquilos estes na Europa.
Tudo começou com uma aposta mal calculada do primeiro-ministro britânico. Liderando um partido, o conservador, com uma ala eurocéptica muito forte, David Cameron lá prometeu, em anteriores eleições, promover um referendo para se apurar se os britânicos queriam continuar a pertencer à União Europeia. A resposta, na altura, pareceu-lhe óbvia, mas Cameron deveria saber melhor do que ninguém que, em política, tudo é muito perene. E aqui estamos nós a poucos dias do escrutínio eleitoral com a Europa petrificada com medo de um abandono inglês.
Na Alemanha, “Der Spiegel” edita o último número com uma edição bilingue. Na capa, um pedido: por favor, não vão embora! Em alemão e em inglês. A chanceler Angela Merkel tem feito declarações cirúrgicas, porque teme os efeitos daquilo que diz. Mas o seu discurso é inequívoco: é preciso manter a UE coesa. Com todos.
No Reino Unido, há uma parte substantiva da população que pensa o contrário. Com alguns media a dar uma expressiva ajuda. O popular jornal “The Sun” já anunciou o seu apoio ao Brexit. Colocando na capa a palavra “Fora”, “The Spectator” publica esta semana um extenso editorial apresentando vários argumentos também a favor da saída do Reino Unido. Segundo a revista, o comércio inglês não é defendido nesta Europa sem rumo, a emigração tem crescido sem controlo e Bruxelas impõe unilateralmente as suas vontades contra os interesses dos ingleses. “Votar pela saída é votar na nossa soberania”, escreve-se, depois de se defender que “a UE é uma aliança de povos insatisfeitos”.
Na passada quinta-feira, o brutal assassino da deputada trabalhista Jo Cox pode baralhar os resultados. No dia anterior à sua morte, Cox esteve num barco no rio Tamisa com o marido e com os seus dois pequenos filhos em defesa da Europa. O primeiro-ministro britânico e o líder do Partido Trabalhista, ambos defensores da integração, apressaram-se a lamentar o sucedido e a lembrar as convicções da jovem deputada. Percebia-se a mensagem.
Exatamente uma semana depois da morte de Jo Cox, os britânicos vão dizer o que querem. E mesmo se a opção for pela continuidade daquilo que existe, haverá sempre consequências. Porque, neste tempo, soube-se que há uma parte muito substancial do país que não gosta da Europa. David Cameron sentirá também o seu lugar periclitante. No Governo e no partido. E nós, cada um à sua maneira, também sentiremos o peso desta iniciativa. E se a resposta britânica for a favor da saída, então estaremos aqui a falar de um verdadeiro terramoto. Com efeitos a todos os níveis.
De hoje até 5ª feira, as principais instituições financeiras estarão de prevenção. A bolsa de Londres tem uma enorme centralidade e, se um pequeno abalo nunca é inócuo, imagine-se um turbilhão chamado saída da União Europeia. Luz amarela também para os emigrantes que estão lá e para os que estão espalhados por outros países. E para as instituições e empresas que contactam regularmente com os ingleses em contexto de trabalho. Na Escócia, fez-se já saber que, se o Reino Unido quiser partir em debandada da UE, os escoceses querem um referendo para serem independentes e escolherem continuar a ser europeus. Ora se a Escócia pode ter essa possibilidade, porque não a Catalunha?... Nenhum de nós conseguirá nesta altura avaliar bem o que está para vir...
Um cenário de permanência do Reino Unido na UE, certamente desejável, far-se-á todavia à custa de um pré-acordo estabelecido entre Bruxelas e Londres que, de certa forma, fragiliza o espírito europeu. Em matéria de livre circulação de pessoas na União, os britânicos negociaram um estatuto diferenciado, apenas aceite face ao risco de uma saída. Por outras palavras, mesmo sem abandono, ficou demonstrado que o projeto europeu está doente e não se antevê como poderá sair dos cuidados intensivos.
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