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Portugal e o colonialismo

Braga - Concelho mais Liberal de Portugal

Portugal e o colonialismo

Ideias

2019-01-21 às 06h00

Moisés de Lemos Martins Moisés de Lemos Martins

Em 2000, o Papa João Paulo II publicou o documento "Memória e Reconciliação: A Igreja e os Erros do Passado". Nele pediu perdão por um conjunto de crimes da Igreja. Entre eles, conversões forçadas, uso da violência e preconceito antijudaico. Já em 1998, este mesmo Papa pedira perdão pelo facto de muitos membros da hierarquia católica não terem ajudado judeus a escapar do Holocausto. E em 2004, João Paulo II voltou a pedir perdão, nesse caso pelos crimes da Inquisição, quando a Igreja torturou e matou pessoas, que considerou hereges.
Mais recentemente, em 2017, foi o Papa Francisco que pediu perdão ao Presidente do Ruanda pelo comportamento deplorável da Igreja, em 1994, aquando do genocídio de 800 mil pessoas no Ruanda. Nessa matança colaboraram padres, frades e freiras.

Também em 2017, o Presidente da República portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, pediu perdão pelo papel assumido por Portugal no comércio de escravos, a partir do século XV. Fê-lo numa visita à ilha de Goreia, no Senegal, que é um dos locais emblemáticos deste comércio.
Vêm estas considerações a propósito de um texto publicado pelo sociólogo moçambicano, Elísio Macamo, em outubro de 2017, no jornal Público: “Portugal pode pedir desculpas? Quantas vezes forem necessárias”.
Distancio-me completamente do propósito defendido por este sociólogo, do Centro de Estudos Africanos, da Universidade de Basileia. Escreve Macamo: “O que está em causa é a relação entre os portugueses e os seus próprios valores, não o que devem aos africanos”.

É numa relação face a face que eu encontro o outro, o qual passa, então, a existir em mim, fazendo parte de mim, constituindo-me. Esse é o caminho do enamoramento, e pode ser também o caminho da compaixão e da solidariedade. Mas a relação com o outro não se esgota no encontro. Depois do encontro do outro, seguem-se, muitas vezes, o seu apagamento e assimilação, e mesmo a dominação. O que podemos dizer, então, é que o outro nunca é redutível ao eu, ou seja, que nunca é apagável em mim. E se o que está em causa é segregar, discriminar e dominar o outro, do que se trata mesmo é de exercer violência sobre o outro.
Há seiscentos anos, a Europa deu início à Expansão marítima. E o mundo conhecido abriu-se à diversidade de outros mundos. Mas este empreendimento, que produziu o encontro entre povos, conjugou-se com a violência exercida pelos povos do norte sobre os povos do sul, com os povos do norte a assimilarem e dominarem os do sul.

Podemos, todavia, dizer que o que se passou com o colonialismo é semelhante à dinâmica de qualquer relação entre os indivíduos e entre os povos. Mas o que é facto é que tudo na Europa a preparou para o regime exclusivo do uno, que apaga o outro. O movimento da cultura ocidental, marcada pelo regime logocêntrico, da tradição greco-latina, e pelo simbólico, da tradição judaico-cristã, traduz uma longa narrativa de absorção do outro pelo regime do mesmo, ou seja, pela metafísica da unidade.

A metafísica da unidade ignora, ou então abafa, anula e absorve toda a diferença. E é por essa razão que o conto é sempre o mesmo. Foi-o com o logocentrismo, em que a razão é a instância soberana de decisão. Foi-o com o etnocentrismo, em que as únicas tradições, memórias e narrativas que importam são as de um povo providencial. Foi-o com o clericalismo, e o propósito uma “única e verdadeira” religião. Foi-o com o imperialismo, em que se manifesta a soberania e a força de um único Estado. Foi-o com o colonialismo, em que a ideia de povo civilizador justifica a missão histórica que este se autoatribui e exerce sobre outros povos. Foi-o com o sexismo/machismo/falocratismo, em que os homens desqualificam e subalternizam as mulheres. E é-o, agora, com o produtivismo, com a civilização tecnológica a mobilizar-nos, total e infinitamente, para o mercado, tendo como corolário a monetarização da vida, ou seja, a conversão de bens, corpos e almas em mercadoria.

Macamo faz a crítica da razão colonial, numa perspetiva meramente moral. Entende Macamo que o colonialismo significa uma traição dos europeus aos seus próprios ideais: “Você é herdeiro de uma cultura que se define por um conjunto de valores que ela própria não soube respeitar de forma consequente e é confrontado com isso; como reage? Encolhe os ombros e diz que foi do tempo, ou pior ainda, que os próprios escravos foram vítimas das suas próprias sociedades?” E conclui Macamo: “Portugal deve pedir desculpas a si próprio por ter violado os seus próprios valores. O pedido de desculpas renova o seu compromisso com esses valores”; “o que está em questão aqui é a relação entre os portugueses e os seus próprios valores”.

Não tenho, de modo nenhum, este entendimento. Penso que as Ciências Sociais e Humanas (CSH) não devam colocar em termos morais a questão colonial. O que se espera de um sociólogo não pode ser o que se espera do líder de uma confissão religiosa, ou então de um líder político, que denunciam a responsabilidade de uma Igreja, ou então de um país, em crimes, do presente ou do passado. Para as CSH, o colonialismo é uma metamorfose da metafísica da unidade, que constituiu o Ocidente, e que apaga toda a diferença. Portanto, o que se espera das CSH é que compreendam e expliquem a lógica que constitui o Ocidente, e em consequência que compreendam e expliquem também o colonialismo, e não que andem à procura de culpados, nem que promovam atos expiatórios de culpas passadas.

Podemos comprovar, no entanto, que existem, ainda hoje, situações de dominação colonial, já em regime pós-colonial. Por exemplo, ao analisarmos o discurso dominante dos média sobre os refugiados, verificamos que um tal discurso não nos traz uma realidade diferente daquela que já conhecemos: a Europa é o nosso lugar, ou seja, é o lugar do mesmo; e a África e o Médio Oriente são os lugares do outro, ou seja, do diferente, do diverso. E no discurso dos média estes mundos nunca se encontram, a ponto de podermos dizer que o mundo do nós fecunda o mundo do outro, e vice-versa. Por um lado, vemos a Europa e os países de África e Médio Oriente como realidades dicotómicas e estanques (centro versus periferia; norte versus sul), com o radicalismo islâmico e o discurso securitário ocidental a torná-las cada vez mais rígidas. Por outro lado, vemos uma permanente reativação do regime do uno, com a Europa a apagar e a absorver o regime do outro.

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