Correio do Minho

Braga, terça-feira

- +

Quando os cidadãos se fazem ouvir

1.758.035 votos de confiança

Quando os cidadãos se fazem ouvir

Ideias

2018-12-16 às 06h00

Artur Coimbra Artur Coimbra

O que se está a passar em França, desde há mais de um mês, com a luta violenta dos chamados “coletes amarelos”, embora representando claramente uma minoria, é um sintoma do profundo desconforto de uma sociedade e da sua elite política que não consegue responder aos anseios, sonhos e expectativas dos cidadãos.
A França que se revolta, corporizada pelos “gilets jaunes”, é a França das “jacqueries” medievais contra a fiscalidade, da Comuna de Paris, da Revolução Francesa, do Maio de 1968. A França dos invisíveis que lutam pela sua visibilidade. Não apenas a França das periferias, dos bairros de lata, mas também, o que não é despiciendo anotar, a dos franceses de classe média baixa que têm emprego mas não conseguem um nível de vida minimamente digno, com ordenados que se evaporam muito antes de um novo mês chegar. A França que foi afectada pelos efeitos da globalização, que perdeu empregos e rendimentos em consequência da crise, que existe há anos mas a que a Alemanha não permitiu dar a expressão de desastre que teve em outros países do sul, mais pobres, frágeis e dependentes (da Grécia a Portugal).

É a França do incómodo, do mal-estar, aquela que se abstém nas eleições mais importantes, porque não acredita nos políticos, da esquerda à extrema-direita, porque não aparecem novas esperanças, porque o sistema estagnou.
A “insurreição amarela” alastrou pelas terras gaulesas, fez estragos, incendiou casas e queimou carros, penalizando os cidadãos, numa ânsia incontida para espalhar a raiva e o ódio à sociedade e à classe política, obrigando à mobilização de milhares de polícias. Pelo meio, certamente, muitos agitadores profissionais, extremistas de direita e de esquerda, anarquistas, ateando o fogo e desencadeando a cólera, para criarem um clima de “quanto pior, melhor”. É um pouco a expressão directa da sociedade, o povo que sai para a rua, correspondendo ao apelo das redes sociais, sem enquadramento de partidos, de sindicatos, de organizações. Movimentos informes, sem líderes que sirvam de interlocutores ao poder, de puro exercício de uma determinada forma de cidadania, que começou a alastrar pelo país em protesto contra o aumento da tributação dos combustíveis.

Emmanuel Macron bem tentou acalmar os ânimos, deitando dinheiro sobre o problema. Numa situação particularmente frágil, o presidente começou por adiar por seis meses o incremento dos combustíveis e anunciou depois o aumento do salário mínimo em França para os 1598 euros (a que distância do salário mínimo que por cá vai passar para os 600 euros, no início do ano que vem!!!). Mais 100 euros para aplacar a revolta. Comunicou ainda medidas para os reformados, a suspensão das taxas sobre o trabalho extraordinário e um prémio de fim de ano para os trabalhadores das empresas que o possam pagar.
Os revoltosos não parecem ter ficado satisfeitos, porque o caderno reivindicativo contém muitos outros pontos que não lograram ser atendidos. É quase um “programa de governo”.

O perigo deste tipo de revoltas é o seu alastramento, por contágio mediático, ideológico, pragmático, ou outro, o que sucedeu já em Bruxelas (Bélgica), centro de poder europeu, na semana passada e se anuncia para Portugal na próxima sexta-feira, 21 de Dezembro, numa iniciativa da extrema-direita. A crise não é exclusiva de Paris.
Tudo porque o “caldo de cultura” que incendiou os ânimos dos franceses médios e invisíveis é o mesmo que fractura a Europa e o Ocidente: a crise económica, a crise social e a crise de confiança nas instituições políticas, nacionais e internacionais. O afastamento brutal entre a ideologia e a práxis dos políticos e dos partidos, entre o que prometem e o que concretizam, gerando o mais profundo descrédito e a desvalorização dos líderes políticos, vistos, não como servidores da causa pública, mas aproveitadores do exercício dos seus cargos para enriqueceram ilicitamente, embarcando em esquemas de corrupção, de compadrio e de vigarices de toda a sorte.

O afastamento dos cidadãos face à política e aos partidos tradicionais, porque não acreditam neles, porque nada lhes dizem, porque mentem descaradamente, porque estão descredibilizados, acaba também por favorecer o aparecimento de soluções extremistas, normalmente de extrema-direita, que está em crescendo por toda a Europa e até pelo mundo (veja-se os casos paradigmáticos de Trump, nos Estados Unidos e de Bolsonaro, no Brasil).
Soluções que passam pelo crescimento dos movimentos populistas que estão já disseminados pelo território europeu, que rejeitam os refugiados e os emigrantes, com o medo de que venham a tomar os escassos empregos que a globalização vai encurtando.

Estamos assim a falar de um desafio directo à democracia que conhecemos, na sua versão representativa dos interesses dos cidadãos, com o surgimento de novas formas de exercício da cidadania, mais directa, menos intermediada ou organizada, no fundo, a cidadania das redes sociais, do combate ao capitalismo e ao elitismo económico e político, a afronta a um sistema económico injusto, em que as fortunas crescem desmesuradamente, enquanto as classes média e baixa se afundam num desespero de terem de hipotecar casas, vender carros, retirar filhos das universidades e idosos dos lares, porque o dinheiro não chega até ao fim do mês.
Foi exactamente o contorno da tragédia que aconteceu em Portugal, nos malfadados anos das tróica, por acção despudorada de um governo que fez gala pública em martirizar os portugueses “mais além” do que a tróica impunha. Contudo, ao contrário do que sucedeu na Espanha, na Grécia e agora em França, em Portugal nunca se registaram grandes manifestações de revolta contra uma situação que levou ao encerramento de milhares de empresas, ao despedimento de milhares de trabalhadores e à emigração forçada de centenas de milhares de cidadãos, muitos deles jovens que aqui deixaram de ter futuro. Um país brando de costumes e pouco atreito a grandes confusões.

Numa Europa sem rumo, à deriva, despojada de lideranças credíveis e respeitadas, como já teve, demasiado afastada dos cidadãos, que não se revêm na sua burocracia absurda e nos seus “diktats” sem sentido, o presente não é brilhante e o futuro nada augura de bom. Falta sentir os problemas do cidadão comum, que é quem vota, quem decide, quem escolhe o devir da Europa.
Por isso, saúda-se o aparecimento de manifesto público de uma centena de economistas europeus com o auspicioso título: “salvar a Europa de si própria”.

Liderado por Thomas Picketty, o economista que durante a crise voltou a colocar os problemas das desigualdades no centro da análise económica, o plano propõe a criação de um orçamento europeu, equivalente a 4% do PIB, destinado a políticas de estabilização económica, a programas de investigação e formação, a investimentos públicos e de transformação do modelo económico europeu e à polémica integração de migrantes. Este orçamento seria financiado por quatro impostos sobre os “vencedores da globalização”: um sobre as grandes empresas, outro sobre a riqueza privada, outro ainda sobre os rendimentos mais altos e por uma taxa sobre as emissões de carbono.
Os grandes também têm de ser chamados a pagar a crise!

Deixa o teu comentário

Últimas Ideias

19 Março 2024

O fim do bi-ideologismo

Usamos cookies para melhorar a experiência de navegação no nosso website. Ao continuar está a aceitar a política de cookies.

Registe-se ou faça login Seta perfil

Com a sessão iniciada poderá fazer download do jornal e poderá escolher a frequência com que recebe a nossa newsletter.




A 1ª página é sua personalize-a Seta menu

Escolha as categorias que farão parte da sua página inicial.

Continuará a ver as manchetes com maior destaque.

Bem-vindo ao Correio do Minho
Permita anúncios no nosso website

Parece que está a utilizar um bloqueador de anúncios.
Utilizamos a publicidade para ajudar a financiar o nosso website.

Permitir anúncios na Antena Minho