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Quando os media passam ao lado da realidade

Um batizado especial

Ideias

2014-11-03 às 06h00

Felisbela Lopes Felisbela Lopes

Elege-se amanhã nos EUA a Câmara dos Representantes (435 membros), 33 dos 100 senadores, 38 dos 50 governadores, 46 dos 50 congressos estatais, juízes dos tribunais supremos de 30 estados e promovem-se 150 referendos. Não é uma eleição menor, pois não? Não, mas os media americanos por estes dias só falaram do Ébola, uma epidemia que não contagiou a América. Por cá, também temos exemplos destes. À nossa escala.

A América está com medo. Em pânico. Era isso que anunciavam as principais revistas esta semana. A Time colocava em capa esta frase: vamos parar o Ébola. No interior da publicação, um extenso artigo de várias páginas dava resposta a 12 perguntas. A primeira era a seguinte: o que aconteceu de errado no CDC (centro de controlo e prevenção de doenças)? Seria uma questão pertinente, se a América tivesse registado vários casos de Ébola. Felizmente isso não aconteceu, mas o CDC envolveu na operação de controlo da doença mais de mil funcionários e os ataques de falta de informação multiplicam-se por todo o lado.

A revista Newsweek procura equacionar o lado positivo de todo este clima de alarme, dizendo que este tema coloca as entidades competentes em alerta em relação às doenças infecciosas. Tudo isto faz com que os americanos estejam conscientes de que é preciso ter cuidado. Mas esse alerta pode também ter efeitos perniciosos. Há vários relatos de africanos discriminados sem qualquer fundamento apenas porque são originários de países onde o surto começou e se expandiu a grande velocidade.

Não aprecio este jornalismo assente em não-acontecimentos, inchado por fontes oficiais que pouco nos dizem acerca daquilo que está a acontecer. Prefiro sempre relatos arrancados da realidade, por mais dura que esta seja. Daí ter ficado muito impressionada com o trabalho publicado esta semana pela Obs (a renovada Nouvel Observateur). A revista francesa enviou para a Guiné Conacri uma repórter para perceber como o Ébola estava a propagar-se. Os relatos são perturbadores, mas ajudam-nos a perceber o que está em causa.

Na longa peça que publica, a jornalista reproduz uma conversa com um médico: “vês esta criança que grita, que chora? Tem 4 anos. Viu os seus pais morrerem aqui. Não posso pegar nela ao colo, por causa do perigo de contágio. Ninguém a consola, porque ninguém fala a sua língua. Se morrer, a última cara que vê é a do diabo”. O diabo a que alude é a ele próprio, o médico que se esconde atrás de proteções que o tapam completamente.

É este o jornalismo necessário, o que nos traz para perto da vida ou da morte, ao ritmo dos factos reais. Precisamos de um jornalismo que trave certas fontes oficiais de produzirem pseudoacontecimentos que nos distraem do essencial.
Por estes dias, discutiu-se na Assembleia da República o Orçamento de Estado para 2015. De quem é que os deputados falaram com mais expressividade? De José Sócrates! O que anunciaram com maior estrondo? Do fim (total ou parcial) dos cortes da função pública em 2016!

Foi essencialmente isso que vi nos media, quando se noticiou a discussão do OE no Parlamento. Onde está a polémica à volta da reforma fiscal? E a reforma do Estado, prometida pelo vice primeiro-ministro? E a crise que Pedro Passos Coelho viveu com Paulo Portas a propósito da elaboração deste documento? Sobre estas questões sobrou apenas um pesado silêncio. A pergunta que devemos fazer é esta: isto faz sentido?

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