Um batizado especial
Ideias
2020-02-22 às 06h00
Sempre me intrigou a sofreguidão com que devoramos “raspadinhas”. Sim, estou a falar do jogo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, um suposto jogo de sorte e de azar, popular, consumido massivamente, um pouco por todo o lado!
Já me deparei com cafés e cafetarias em que uma das paredes é destinada à afixação de rolos, até ao chão, de “raspadinhas”. Estão tapadas, as referidas paredes; integralmente tapadas e decoradas, de manhã, com intermináveis serpentes de “raspadinhas”. Ao fim da tarde, pura e simplesmente, a decoração desapareceu, as paredes estão nuas e descoloridas. Até à manhã seguinte…. Tudo (todas as “raspadinhas”) foram, durante o dia, compradas, devoradas. Vejo pessoas nas tabacarias a receberem o troco das compras principais em “raspadinhas” e, de imediato, regressarem para adquirir mais. Letreiros em balcões com a indicação: ”Não raspe aqui”. Mas o que me intriga é, sobretudo, o ar e a concentração adita de alguns compradores.
Ora, dois investigadores da Escola de Medicina da Universidade do Minho – Pedro Morgado e Daniela Vilaverde – publicaram agora um estudo em que evidenciam esta suspeita: temos coletivamente o vício das “raspadinhas”. Somos o país da Europa onde se gasta mais dinheiro em “raspadinhas”, para alegria dos cofres da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Em 2018, os portugueses gastaram quase 1,6 mil milhões de Euros a tentar a sorte e a raspar papelinhos que os habilitaram a ganhar prémios que vão, de um modo geral, desde os 100 Euros até aos 10.000 Euros. Mas sobretudo, que fazem perder um ou dois euros….o preço da ilusão e, pelos vistos, comprovadamente de forma científica, de uma adição popular.
É evidente que haverá outro tipo de adição mais nocivo e preocupante. Continuamos, também neste domínio das adições coletivas, a ser os primeiros noutros casos bem mais graves. A nossa taxa de alcoolismo, por exemplo, continua a ser espantosamente elevada, no contexto europeu.
Mas, esses traços da nossa personalidade coletiva (expressão errónea, generalização perigosa…mas, de certo modo, com as devidas reservas, tendencialmente ilustrativa de alguns aspetos sociológicos, marcantes da nossa vida coletiva) fazem-me pensar noutras situações, não digo de adição, mas, pelo menos, de vícios.
Temos o vício de discutir, de falar e debater muito, apaixonada e empenhadamente, sobretudo, se não tivermos que arrostar com muitas consequências. Aderimos muito e muito facilmente a muitas “causas fraturantes”, sobretudo, inconsequentes no contexto global dos nossos problemas coletivos. O Leitor faça, por exemplo, um apanhado das grandes discussões e debates político-legislativos que tivemos, até agora, desde que a Lei do Orçamento foi aprovada…. Não as quero qualificar, não quero sequer chamar-lhes “causas fraturantes”. Uma grande parte do nosso tempo mediático-parlamentar foi, de resto, ocupado por coisas que nem causas são: o “pingue – pongue” novelístico Joacine/André Ventura, para gáudio da imprensa institucional (e das redes sociais). Mas, entretanto, outras questões decisivas para a nossa vida coletiva e com consequências futuras relevantíssimas, perderam espaço! A questão problemática e confusa da eventual extração, em Portugal, do lítio, arrefeceu. Em termos europeus, passou o “Brexit” e, por exemplo, a apresentação da agenda digital, do Livro Banco “Preparar a Europa para a Era Digital”, da Comissão Europeia (apresentação ocorrida esta semana que agora termina), passou também, entre nós, em branco (passe a repetição e o sublinhado) no nosso debate, senão politico, pelo menos, cívico-político e mediático. Parece-me que, por vezes, temos o vício empolgado de discutir empenhadamente inconsequências, para depois, naquilo que direta e imediatamente pode mudar mesmo a nossa vida coletiva, nada dizermos. Enfim, pode ser uma forma de reação, de contestação pacífica e educada, sem coletes carnavalescos (amarelos ou de outra cor qualquer). Pode ser uma reação coletiva realmente indiciadora de desinteresse pela política que se vai fazendo (e. talvez principalmente, pela forma como se faz e se comunica politicamente!). De um modo otimista, sempre podemos dizer que preferimos exercer a nossa cidadania, acima de tudo, sendo solidários e ajudando a Santa Casa da Misericórdia, comprando “raspadinhas”.
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