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Reabilitação em marcha?

Braga - Concelho mais Liberal de Portugal

Reabilitação em marcha?

Ideias

2022-10-25 às 06h00

Jorge Cruz Jorge Cruz

As comemorações do centenário de Agustina Bessa Luís iniciaram-se há pouco mais de uma semana, justamente no dia em que se assinalava o seu aniversário, e vão prolongar-se até Outubro do próximo ano.
Lideradas pela Câmara de Amarante, concelho de onde a escritora é natural, as celebrações serão corporizadas através de um vasto conjunto de iniciativas, geograficamente descentralizadas, visando valorizar e promover o legado artístico e cultural, bem assim como os vínculos territoriais da escritora. Não surpreende, por isso, que os municípios de Baião, Esposende, Peso da Régua, Porto, Póvoa de Varzim e Vila do Conde também se tivessem envolvido num consórcio formado propositadamente para as comemorações. Liderado por Amarante, integra também as Universidades do Porto, Minho e Trás-os-Montes e Alto Douro, além da Direção Regional de Cultura do Norte, do Turismo do Porto e Norte, da Fundação de Serralves e da RTP.
Será um programa riquíssimo, condizente com a homenagem que é devida a uma das mais relevantes figuras da cultura e da literatura portuguesas, “uma mulher sem medo, de uma coragem ilimitada”, conforme foi recordada pelo Presidente da República. Aliás, Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), que presidiu à abertura das comemorações, fez questão de classificar Agustina como “uma mulher política, no sentido de viver o que é ser-se político, na dimensão mais profunda do termo”, uma mulher que “vibrava com aquilo que era o interesse nacional, vibrava com aquilo que considerava fundamental para a comunidade”.
Antes, o presidente da Câmara de Amarante já tinha sublinhado que “Agustina Bessa-Luís, um dos mais proeminentes nomes da ficção portuguesa contemporânea, deve-nos inspirar, animar, por um lado, e inquietar por outro, para que não nos deixemos acomodar ao que nos parece fixo e imutável”. José Luís Gaspar acentuou ainda que ela “foi, de facto, notável e continua a inspirar grandes obras e grandes movimentos, com a sua literatura e com o seu espírito fascinante”, deixando o apelo para que “saibamos nós, em conjunto, seguir esse caminho e o seu exemplo”.
Este clima de exultação que o enaltecimento da figura da homenageada e da sua obra estava a gerar foi, de algum modo, ensombrado por um dos habituais dislates de MRS.
Esquecendo o lugar e a circunstância em que se encontrava – a abertura solene das comemorações do centenário de Agustina, convém relembrar -, o bibliófilo Marcelo decidiu, completamente a despropósito, glorificar Passos Coelho e, por arrastamento, o neoliberalismo que o antigo Primeiro-ministro tentou impor! Parafraseando o então (?) comentador MRS, isto não lembra ao careca!
Eu sei que, na cerimónia, o edil da Amarante referiu que falar de Agustina “não é tarefa simples, porquanto a sua linguagem narrativa é densa, enigmática e paradoxal”. Mas, que diabo!, secundarizar a figura central da homenagem para tentar reabilitar um personagem, no mínimo controverso, não é uma atitude que se esperaria do mais alto magistrado da nação.
“Lembrar quanto Portugal lhe deve no passado e quanto Portugal está seguro de lhe vir a dever, muito mais, no futuro”, disse Marcelo dirigindo-se ao “senhor Primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho”, que estava sentado na primeira fila dos assistentes à cerimónia.
Ao virar os focos para o antigo Primeiro-ministro, com afirmações tão controversas como aquelas que produziu, convenhamos que o Presidente não esteve bem.
Tal como eu próprio, o cidadão Marcelo tem todo o direito de exprimir a sua opinião, por mais controversa que ela seja. Mas o Chefe de Estado, enquanto tal, deve abster-se de se imiscuir na vida dos partidos, deve privar-se de interferir em assuntos que não pertencem à sua área de intervenção.
E este princípio aplica-se quer quando envereda pela futurologia – “sendo tão novo [Passos Coelho], o país pode esperar, deve esperar, muito ainda do seu contributo no futuro, não tenho dúvidas” – quer quando arrisca afirmações infelizes e controversas, como aquela em que considera que “haver 400 casos [de abusos sexuais no seio da Igreja Católica] não parece que seja particularmente elevado”.
Os portugueses têm memória (às vezes não parece, é verdade!) das dificuldades com que se defrontaram no tempo da personagem que agora o Presidente da República pretende reabilitar. Não se esqueceram, por exemplo, da exortação de Passos aos jovens licenciados para que emigrassem, das privatizações de serviços públicos e de tantas outras malfeitorias, como a supressão de feriados, ou seja, um conjunto de decisões que contribuíram para agravar a vida dos portugueses.
E é justamente numa altura em que no horizonte começam a surgir nuvens cinzentas, numa conjuntura em que dificuldades extremas já influenciam fortemente o quotidiano das pessoas, que Marcelo se lembra de desenterrar uma figura que, em boa verdade, até ao eleitorado da direita causa sérias reservas. Eu sei que, como é usual dizer-se, Marcelo não dá ponto sem nó. Mas mesmo que se admita a hipótese desta locução ter aqui cabimento, a conclusão que se pode retirar é óbvia: a intervenção foi absolutamente descabida, tendo em conta a qualidade do autor e o local, além de ter acontecido no pior momento, sob o ponto de vista político-social.
Talvez seja, assim, oportuno regressar de novo a Agustina Bessa-Luís e ao seu “Caderno de Significados”: “As palavras não significam nada se não forem recebidas como um eco da vontade de quem as ouve.”

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