Correio do Minho

Braga, segunda-feira

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Recordações da P. Varzim: o grande naufrágio

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

Conta o Leitor

2012-08-06 às 06h00

Escritor Escritor

A minha memória está a ficar um pouco vazia, pois não me lembro ao certo quando ocorreu a grande tragédia marítima no mar da Póvoa de Varzim. Contudo e segundo pesquisa na Internet ocorreu no dia 2 de Dezembro do ano de 1947. Recordo no entanto que numa cacimbada noite de Inverno andava eu a vaguear no Passeio Alegre nas imediações do café Diana Bar, quando pressenti grande vozearia na enseada do porto de pesca. Fui-me aproximando e vislumbrei ao longe grande correria de gente de braços erguidos para o céu a caminho do areal vindos dos lados da igreja da Nossa Senhora da Lapa. À medida que me ia aproximando mais nítidas se tornavam os vultos e os sons dos 'Ai!...Jesus!...''Meu!...Deus!...''Nossa Senhora nos acuda!...' e entre choros que ouvia distintamente. 'Ai!...meu rico homem!...''Salvai-o meu bom Jesus!...' 'Santa mãe de Deus, trazei-o para terra!...'. O areal da enseada estava pejado de gente, as lamurias soavam por todo o lado e os velhos pescadores entre murmúrios e desabafos diziam: 'Não se salva um!...' 'A borrasca é grande!...' e o vento era tão forte que abanava fortemente os mastros dos barcos ancorados no porto.
O céu ficou negro de repente e a noite tenebrosa. O temor assustou o gentio que se apinhava cada vez mais denso. As lágrimas que vi correr cara abaixo, onde as rugas da face já contavam muitas primaveras nas mulheres e a catraiada agarrada a saia das mães que soluçavam de emoção, despertaram em mim momentos de grande comoção. Seis ou sete barcos a vela, pois era assim que naquele tempo navegavam os pescadores poveiros, tinham partido ao fim da tarde para a faina da pesca como era habitual. Porém uma vaga de mar agitada por inesperados ventos alísios afundou os barcos e só um conseguiu voltar para trás e com grande risco entrar barra dentro. Todos os demais se soube depois que naufragaram e com eles lá foram para as profundezas do oceano os arrojados pescadores.
Muitas viúvas e órfãos sepultaram no coração a perda dos entes queridos a quem o mar roubou a vida a arrecadou muita miséria nos seus lares. Foi a noite mais trágica que me comoveu a alma por sentir também o sofrimento e o desespero das lamurias que as pessoas proferiram nas suas preces. Agarradas umas às outras num frenesim de histerismo, o destino recusou-lhes os clamores que imploravam, porque a força dos ventos em rajadas ciclónicas e as ondas do mar bramindo e cavando abismos são fenómenos da natureza que o poder humano tem de respeitar. A noite foi longa e o sofrimento atroz sem meios de se lhes poder valer porque vagas gigantescas assolavam nos molhos do porto impedindo que o salva-vidas 'Cego do Maio' se fizesse ao mar.
Pereceram 70 pescadores naquela tenebrosa noite que enlutou numerosas famílias e empobreceu muitos lares. Naquele tempo e no meio piscatório, mormente no bairro das Caxinas, a maior parte dos moradores vivia da pesca nem sempre abundante, porque o inverno trazia-lhes o defeso com o mau tempo que fazia meses a fio pois só durante o verão molhavam as redes e colhiam algum proveito. As mulheres cuidavam da casa e dos filhos que criavam ás manadas e faziam dívidas nas lojas que acumulavam em pleno inverno e iam pagando aos poucos durante a safra no verão. Os pescadores passavam a maior parte do tempo nos cafés ou nas tascas, com uma beata no campo da boca a jogar ás cartas para encurtar o tempo quando não iam fainar, concertar as redes ou amanhar os apetrechos da pescas. Gente ordeira e pacífica mas grosseira na fala e nos modos de agir.
Distinguiam-se também pelo uso de camisas de flanela aos quadrados e com as folclóricas camisolas de lã brancas bordadas com signos e ornatos em lã vermelha.
Germina neles um arreigado patriotismo poveiro de que muito se orgulham e são também fervorosos devotos pois sempre que saem ou entram na barra benzem-se e rogam a Deus e a Virgem Maria a sua protecção. E para culminar este episódio de que guardo penosas recordações vem-me a memória o Adriano. Era o filho mais velho de um casal cujo pai era pescador e que tinha uma camada de irmãos. Parece que estou a vê-lo, uma cara redonda de face requeimada pelo Sol durante catorze anos que era a sua idade, espessas sobrancelhas, lábios grossos e cabelo carapinha muito negro, corpo escanzelado, o casaco cobria-lhe os joelhos as calças muito rotas e os pés descalços. Todas as tardes aparecia à porta da pensão da Dona Patrocínio, a meio da rua da Junqueira na Póvoa de Varzim, onde eu estava hospedado, a hora de jantar, esperando a saída dos hospedes para lhes pedir uns tostõezinhos ou receber um moletinho de trigo que lhe levava-mos e ás vezes até com um presigo de carne. A dona da pensão não gostava muito mas nos tínhamos pena do rapaz e as escondidas lá surripiávamos alguma coisa para lhe levar. Era assim que o Adriano ia consolando o estômago da fome negra que não saciava todos os dias. Porém, já não me lembro quando, mas foi nos meados do Inverno já eu tinha casado e possuía uma casa arrendada na rua de acesso a Igreja Matriz que só utilizávamos aos fins de semana, porque a minha esposa estava lesionada na secundária da cidade do Porto e simultaneamente frequentava os estudos para o bacharelato. Tinha acabado de jantar na Pensão e à porta, como de costumo, lá estava o bonacheirão Adriano. Ao sair, afável e sorridente deu-me as boas noites e diz-me: Sr. Renato tenho fome!!... Não pensei duas vezes e disse-lhe, anda comigo. Rua da Junqueira fora, atravessamos a Praça do Almada e logo mais abri a porta de casa e balbuciei, entra!.... Fomos direitos a cozinha, peguei numa grande panela de alumínio e pu-la com água no fogão. Depois fui buscar uma manada de batatas que meti dentro e deixei cozer um pedaço de toucinho. Assim que ficaram cozidas vazei-as para um prato que ficou bem cheio e até não couberam todas as que tinha na panela. Não se imagina a sofreguidão como foram comidas aquelas batatas apenas com um fio de azeite e que em pouco tempo lhe passaram pela goela. Naquele dia fiquei a saber o que era a fome, coisa que felizmente nunca senti na minha vida. E com um copinho de vinho para ensopar aquela batatada que naquele dia lhe agasalhou o estômago, lá foi o Adriano para casa um pouco mais confortado dormir, quem sabe, debaixo dumas mantas ao lado dos irmãos, porque naquele tempo havia miséria em muitos lares.

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