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Reforma do Estado: prometer é fácil, mudar é outra coisa

De Auschwitz a Gaza

Reforma do Estado: prometer é fácil, mudar é outra coisa

Ideias

2025-06-23 às 06h00

Pedro J. Camões Pedro J. Camões

O Governo apresentou, com notória vontade reformista, uma proposta de reforma do Estado que ocupa lugar de destaque na sua agenda política. Num país historicamente marcado por longas fases de inércia institucional entrecortado por ciclos curtos de entusiasmo reformador, esta proposta surge com promessas de transformação estrutural: simplificação, digitalização, responsabilização e meritocracia, mas também maior eficiência, dirigentes competentes e uma administração ao serviço dos cidadãos. São objetivos que poucos contestariam. O problema é que já os ouvimos muitas vezes — e que, quase sempre, se esfumam entre anúncios e decretos, sem efeitos duradouros.

Este ceticismo resulta da observação continuada de três bloqueios estruturais que, ao longo dos anos, minaram muitas das tentativas de reforma. Não basta identificar problemas — é preciso compreender por que razão persistem. E, acima de tudo, é preciso ter coragem para mexer nas peças certas.
A primeira barreira estrutural reside na visão profundamente legalista que domina a organização da administração pública portuguesa. Não é apenas um problema de excesso de normas ou de complexidade de procedimentos. É um modo de funcionar.

Em Portugal, muitos problemas de desempenho da administração são diagnosticados e enfrentados como se fossem falhas legais, para resolver através da produção de novas regras. O resultado é a proliferação de leis, regulamentos e circulares, frequentemente incoerentes entre si, que obscurecem os objetivos de política pública e transformam os instrumentos de gestão em formalismos vazios.
O resultado é um sistema que resiste à responsabilização: define objetivos sem ligação aos recursos, aplica modelos de avaliação sem consequências, e distribui responsabilidades sem mecanismos claros de prestação de contas. A gestão — no sentido de alocar recursos a fins, medir resultados e corrigir falhas — continua ausente de grande parte da máquina pública. Sem alterar esta lógica, qualquer reforma será superficial.
O segundo bloqueio estrutural está na forma como se escolhem os dirigentes da administração pública. O problema não é novo, mas mantém-se central. A administração portuguesa sofre de uma inadequada seleção dos seus líderes intermédios e superiores.

A nomeação para cargos de direção é frequentemente entendida como recompensa por antiguidade, quando não mesmo como um prémio por lealdade partidária, em vez de ser um exercício rigo- roso de seleção com base em mérito, competências de gestão e capacidade de liderança.
O problema não é apenas a falta de “bons perfis”. É a ausência de um sistema coerente que exija, avalie e selecione dirigentes com base em capacidade de gestão. A responsabilidade pela execução das políticas públicas está profundamente dependente de quem dirige os serviços — e, no entanto, raramente se discute seriamente o que se espera de um diretor ou de um gestor público.

Por fim, há um problema clássico de desenho das reformas públicas que é muito notório neste programa: a tentação de querer fazer tudo ao mesmo tempo. A reforma do Estado proposta atua em múltiplas camadas – da estrutura do Estado central à prestação de serviços, da digitalização ao orçamento, da contratação pública ao regime de carreiras – e interage com todas as áreas governativas. A ambição transversal, que é meritória do ponto de vista do diagnóstico, torna-se um risco quando não há uma clara hierarquia de prioridades, nem uma sequência exequível de implementação.
A experiência passada mostra que reformas generalistas, com dezenas de medidas em simultâneo, têm baixa probabilidade de sucesso. É preciso fazer escolhas. Reformar implica concentrar recursos políticos e administrativos em poucos objetivos — bem definidos, exigentes e verificáveis.

Reformas que tentam resolver todos os problemas ao mesmo tempo acabam frequentemente por não resolver nenhum. A falta de foco operacional e a ausência de mecanismos fortes de coordenação política e técnica tendem a dispersar os esforços, esgotar os recursos e alimentar o cinismo dos profissionais do setor público. Como já sucedeu no passado, as reformas tendem a ser lançadas em catadupa, sem tempo para consolidar os instrumentos anteriores, sem acompanhamento, e com uma elevada taxa de reversão ou abandono silencioso.
A reforma do Estado será sempre uma promessa difícil. É estruturalmente complexa, politicamente sensível e administrativamente exigente. Precisa de escolhas difíceis. É neste ponto que o realismo deve entrar na equação. Uma reforma verdadeira do Estado não precisa de ser feita toda de uma vez. Precisa de ser credível, sustentável e consistente. Isso implica concentrar esforços em áreas-chave, estabelecer compromissos públicos e mensuráveis, e garantir que os responsáveis políticos acompanham e corrigem os desvios.

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