Portugueses bacteriologicamente impuros
Escreve quem sabe
2018-09-25 às 06h00
Era fã de legos* na minha infância. Herdei grande parte dos brinquedos dos meus irmãos e, visto que eram ambos rapazes, significou que tinha uma grande parte de carrinhos, espadas, pistolas de cowboys e pistas, bem à moda dos anos oitenta. Nada de carrinhos cor-de-rosa ou cores neutras. Tudo bem pintado de azul e verde. E os legos não eram exceção, visto que nunca vi uma peça cor-de-rosa durante o tempo que brinquei com eles. Aliás, nem sei se existiam – suponho que sim.
Claro que tive bonecas com folhos, puzzles com a Branca de Neve e a Cinderela, uma máquina de costura (branca e rosa, na incitação à dona de casa ideal) e um sem número de bonecas esguias, às quais tirava a roupa porque o giro da coisa seria pentear os longos cabelos loiros das criaturas, e as roupitas não davam jeito nenhum. Nunca tive um boneco com fralda, a quem dava o biberão e fazia “xixi” (típico da minha geração), pois os meus pais não o consideravam muito pedagógico – foi a resposta que recebi quando pedi um boneco desses e, escusado será dizer, tive de ir ao dicionário ver o que significava “pedagógico”, pedindo respetivas explicações às entidades parentais. Foi a mesma resposta que recebi quando pedi para ter televisão quarto – ainda hoje não tenho e realmente não quero ter.
Mas o que gostava mais, assim a paixão assolapada, eram umas bonecas bem pequenas, com uma barriguita bem grande, e os livros - incluindo os de pintar. Penso que essas bonecas hoje em dia são diferentes daquelas da minha infância, mas, na altura, as suas figuras e a heterogeneidade de personagens que havia (umas brilhavam no escuro, outras tinham caracóis, umas eram índias com penas no cabelo, outras eram ruivas, …) possibilitavam-me uma visão ampliada do mundo. Os livros faziam-me entrar em perspetivas diferentes das minhas, conhecendo aquilo que ia para além das paredes da minha reduzida comunidade. Os meus pais agradeciam e estimulavam a leitura – além de ficar sossegada, achavam que os livros promoviam as minhas idas ao escritório para consultar o tal dicionário que, diga-se de passagem, foi bastante utilizado.
No entanto, e ainda voltado aos legos, volto a brincar com eles por ter crianças no meio familiar e afetivo que me pertence. E descobri que existe, habitualmente, para cada caixa com peças, um livro de instruções - desconhecia a existência destes livros, visto que a minha herança contemplou as peças que os meus irmãos não perderam e, se na altura existiram estes livros (penso que não…), não vieram nos sacos do espólio herdado. Estas instruções dão muito jeito, em especial quando queremos construir um dragão que cospe fogo ou o carro dos bombeiros com a escada articulada. Como o conseguiria fazer sem ter um guia que me direcionasse? Seria bastante difícil construir o dito dragão, em especial porque a meio, provavelmente, apetecer-me-ia construir outra coisa qualquer. E isto, hoje em dia, pelos vistos, não pode ser assim como nos apetece. E tanto não pode que, as “minhas” crianças, todas aquelas com quem já tive o prazer de fazer construções (e foram muitas…), ficam bastante zangadas quando começo a tentar fugir às instruções e a pedir para construirmos algo diferente. É um sarilho e meto-me numa embrulhada. Costumamos ter o caldo entornado e a situação só fica resolvida, muitas vezes, com uma boa dose de cócegas – continuo a achar que uma boa dose de cócegas resolveria metade dos problemas no mundo – ou então porque elas acham que sou uma das tias preferidas, visto que tiro os tacões e ando descalça a brincar com elas (não aconselho a fazer isto antes de uma cerimónia, não vai correr bem, já experimentei).
Todas estas instruções e sequências deixam-me a pensar. Penso nos espartilhos da sociedade e nas regras que impomos às crianças. Na obrigatoriedade de seguir uma linha, que só pode ser aquela, sem alteração de trajetórias ou manifestação de criatividade pelo caminho. No tipo de adultos que se vão tornar, quiçá pouco flexíveis, pouco pensantes, pouco rebeldes. Penso igualmente no equilíbrio que os pais devem ter hoje em dia, e no como é difícil este balanço entre tudo o que são as correrias do dia-a-dia – e todos eles estão de parabéns, pelo esforço megalómano que realizam.
Será esta a lógica de encaixe que queremos seguir? Bastar-nos-á o livro de instruções? E para nós, os adultos que precisam de tomar decisões, não será que já há muito tempo que abandonamos o modo “perfeito” de seguir com as linhas das nossas vidas? Pergunto: há algum mal nisso? Sermos mais humanos, mais criativos, talvez, mais insurretos? Mais livres?
Não vejo mal nenhum nos legos, não quero ser mal-entendida. Aliás, considero que são brinquedos brilhantes e estabelecem pontes relacionais entre as crianças e as pessoas que os rodeiam. E igualmente entre os adultos - não fosse eu amante da fantasia que considera uns legos, aqueles do Harry Potter, uma das sete maravilhas deste mundo.
A mim fez-me muito bem herdar os brinquedos dos mais velhos: fomentou a imaginação, a desenvoltura, a tolerância. Considero que essa herança é uma das riquezas da minha infância, que ainda hoje me influencia como pessoa adulta. Mas, porque não tentamos, com as “nossas” crianças, colocar de lado, de quando a quando, o livro de instruções? Talvez não seja construído um dragão que cospe fogo e nos fiquemos por um pseudo-lagarto/dinossauro/algo que não sabemos bem o que é. Mas, no fundo, já marcamos a diferença.
*Nota: sendo que lego se refere, neste texto, a todo os jogos de encaixe, com diversas peças, para construção, utilizados principalmente por crianças, não manifestando a preferência pela marca comercial.
15 Junho 2025
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