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Ruínas

Uma primeira vez... no andebol feminino

Ruínas

Ideias

2023-03-05 às 06h00

José Manuel Cruz José Manuel Cruz

Agnès Lassalle foi a inumar sexta-feira. Agnès foi assassinada por aluno seu, em sala de aula. Agnès era professora de castelhano em Saint Jean de Luz, recanto até ver pacato, e nada de especialmente gravoso caracterizava a escola em que exercia – estabelecimento privado, de perfil católico. De más notas não seria o aluno, isto pelo geral, que a língua estrangeira não lhe iria muito bem. Que uma voz lhe segredava que matasse a professora, ter-se-á justificado. Que mal calha que uma voz não tivesse implicado com ele, chamando-o a estudo! Como de vulgar bic-quatro-cores, vai rapaz monstrificado de faca de cozinha em pasta. Quem o pudera prever? Nem em sala, em cima da situação, que calmo foi o levantar-se de seu lugar, que suave foi o seu aproximar-se da porta, trancando-a, que deslizante, à vista de todos, foi o seu acercar-se da infausta maestra.
Poluição televisiva em torno de descorada possessão, arenga sobre exorcismos em salada mista com esquizofrenias, temperada com molho caseiro de depressões. Se singular andorinha não faz primavera, horror extraordinário não faz clima dominante de uma época, ou, pelo menos, é nisto que queremos acreditar. Queremos nós acreditar, sobretudo, que coisa assim não chegue cá.
De que mecanismos de auto-protecção temos vindo a abdicar? Com quantas derivas educativas pactuamos? Que valor têm os Valores? Em que redes de refugo, ditas sociais, nos engrandecemos, descobrimos e aprimoramos princípios? Por que ópios suprimimos o malsão ópio do povo? Muito se interliga numa espiral de desagregação e, nenhum nexo havendo entre o assassinato de Agnès e a degolação de Samuel Paty – recorda-se, professor sacrificado por ter ousado defender o laicismo e liberdade de expressão –, algo ressalta em comum, a saber, a dessacralização das figuras de autoridade, tanto à escala intrafamiliar, como da sociedade no seu todo.
De feição não correm os tempos à Igreja, bem o sabemos, por toda a parte, em Portugal, e particularmente em França, onde rara é a semana em que uma igreja não é profanada, em que a estatuária não é derrubada, em que um religioso ou religiosa não é agravado por ditos ou algo mais. Mas, se o que acontece neste particular, ainda o levaremos por desforra de ofensas que o clero espalhou, por pouco pecaminoso passa o corpo dos professores. Convenhamos, há de ser preciso que algo grite de forma ensurdecedora dentro de um espírito, para que rapazote não saiba onde procurar voz que contrarie a que lhe grila que espete faca em peito de professora que, de tão atónita, nem esboça gesto de defesa.
Estamos mais sós, perdemos a capacidade de ver ao longe, de ver além. Passamos a rolo compressor o espiritual, porque urgiria tratar do bem-estar material, e não há bom livro que bata festa desabrida, e não há bom estudo sobre os meandros do pensamento que bata uma borrada electrónica de combate ou um desafio em tempo real para colectivo de seguidores.
Forçoso é que se diga que fizemos um bom pedaço de caminho até chegarmos aqui. Que linha vem imperando de há décadas a esta parte? Não é essa de que ideia não enche barriga? Não é essa de que as humanidades dispersam, e que o fundamental, mesmo, é que nos encaixemos onde possamos ga- nhar belo dinheiro? Não assistimos nós a uma crescente alienação do espírito, pasme-se, em fundo de sociedade democrática? Quem se atreve a declarar a estupidificação em horário nobre um mecanismo totalitário de controlo?
Impregnamo-nos de ideias feitas – nós somos sempre os bons, os outros maus; as maiorias dão bom governo, as minorias promovem a instabilidade; a democracia é virtuosa e imaculada, ainda que, por vias travessas, vá beber a bica de tiranete…
E o grave é que, vendo-o cada um de nós, acabamos por abdicar, e por nos perdermos à mão dos nossos fantasmas.

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