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Salvar o quotidiano em Braga - Cenas e Vistas d’A Brasileira

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Salvar o quotidiano em Braga - Cenas e Vistas d’A Brasileira

Ideias

2020-09-28 às 06h00

Moisés de Lemos Martins Moisés de Lemos Martins

Na semana passada realizou-se, em Braga, a apresentação de Cenas e Vistas d’A Brasileira. O livro constitui um estudo memorial, de cenas e vistas sobre A Brasileira, que é um dos cafés mais emblemáticos da cidade. Criado em 1907, é-lhe atribuído, hoje, valor patrimonial.
Cenas e Vistas d’A Brasileira tem como autores a Professora Helena Pires e dois bolseiros de investigação, Fábio Marques e Sofia Gomes. Envolveu num movimento de cooperação a Câmara Municipal de Braga e o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade - CECS, da Universidade do Minho, através d’A Passeio, uma plataforma de intervenção sobre a cultura e a arte urbanas. O livro conta com o trabalho do escritor e ilustrador, Pedro Seromenho, o qual, com 15 imagens, dá a Cenas e Vistas d’A Brasileira, numa narrativa autónoma, uma dimensão estética superior. O jornalista, Eduardo Jorge Madureira, apresentou o livro.
Cenas e Vistas d’A Brasileira é um projeto editorial, que se apresenta como um bloco de notas de viagem, figurando um caderno moleskine. E como projeto, pertence ao mesmo grupo de palavras que promessa. Um projeto lança uma ideia para diante. E a promessa garante o que há-de vir adiante. Além de projeto e promessa, integram a mesma família de palavras, prospetiva, que é ver para diante, e prognóstico, que é conhecer para diante. E mesmo propósito, que é uma intenção para diante.

Pode parecer paradoxal e até pode pensar-se que se está a falar a partir do lado errado, quando se quer ver o futuro olhando para o passado. Mas não há nada de mais equivocado.
Dizia Heidegger que a dimensão que melhor carateriza o humano é a de habitar um espaço. Porque no ato de habitar todos nos tornamos uma espécie de caracóis, carregando às costas a nossa própria casa, o que quer dizer, o nosso imaginário. Para a cidade de Braga, o café A Brasileira é a sua casa carregada às costas, o seu imaginário. Cenas e Vistas d’A Brasileira ocupa-se do modo como em mais de um século A Brasileira foi habitada pela população de Braga. Memórias, durações, ritmos, cadências, ressonâncias, sonoridades, enfim, a cidade de Braga em pulsão da vida, tudo passou por este café venerável, que atravessou o século XX e se mantém, altaneiro, em pleno século XXI, com os trabalhos de restauro a que foi recentemente submetido.

Em Cenas e Vistas d’A Brasileira, habitar o espaço da cidade de Braga é habitar o seu quotidiano. Transportando às costas o imaginário da cidade, Cenas e Vistas d’A Brasileira nunca nos dá a ver Braga como uma coisa definida, porque seria definitiva. Dá-nos a ver, sim, a cidade como coisa indefinida e infinitiva, sempre a fazer-se pela “palavra quotidiana”, de que falava Maurice Blanchot.
Do quotidiano ocupam-se os média, e também, cada vez mais, a ciência e as artes. Mas os média, as artes e a ciência cada vez parecem ter um compromisso mais reduzido com a época e as ideias que a motivam.
Tendo-se deslocado da palavra para a imagem de produção tecnológica, o nosso tempo deixou de ter na palavra, nas ideias e no pensamento, a sua centralidade. Hoje, são as emoções que se impõem, a ponto de o humano e a cultura terem entrado em crise e ameaçarem colapsar. Mobilizados que estamos, total e infinitamente, para uma qualquer competição, um qualquer ranking, uma qualquer estatística, deixámos, é um facto, de ter fundamento seguro, território conhecido e identidade estável.

Dizia o escritor Paul Celan, que ao tempo lhe convêm três acentos. Mas, no nosso tempo, como que caíram, ao tempo, de uma penada só, os seus três acentos. O acento agudo da atualidade, que é o acento do nosso confronto com as coisas que vemos, com os outros com que temos que ver, e com nós próprios. O acento grave da historicidade, que é o acento da nossa responsabilidade perante o curso das gerações, as do passado, as do presente e as do futuro, cuidando de todos, especialmente, dos jovens, dos velhos e dos mais vulneráveis. E o acento circunflexo da eternidade, sendo o acento circunflexo um sinal de expansão do tempo.

Hoje, todavia, pode dizer-se que já não é possível sentir como uma experiência o nosso confronto com as coisas. A lógica de tudo o que existe assenta, agora, nas ideias de crescimento e de progresso ininterruptos. E isso não passa de uma doença. Nestas circunstâncias, a atualidade, o que está “in actu”, o acento agudo do tempo, é-nos confiscado. E o eterno, o acento circunflexo que expande o tempo, não passa de mais um fragmento na enxurrada em que vão, rio abaixo, todos os nomes que nos falavam de uma presença plena, o que quer dizer, de um fundamento: essência, substância, sujeito, consciência, existência, Deus, homem, transcendência.
E como estão hoje longe a ciência, a arte e os média de constituírem uma promessa, uma palavra essencial, uma palavra que nos garanta a eternidade! Era Jorge Luís Borges que falava assim da promessa: apenas pela palavra podemos prometer e na promessa alguma coisa existe de imortal. Pensando no quotidiano, do que se trata mesmo é de garantir “a profundidade do que é superficial”, como bem lembrou Maurice Blanchot, em A Palavra Quotidiana. E afirmar a profundidade do que é superficial é batermo-nos pelas nossas palavras, como se nelas jogássemos a própria vida.

Pode dizer-se que Cenas e Vistas d’A Brasileira cumpre a promessa de salvar o quotidiano, “escrevendo bem o medíocre", ou seja, escrevendo “nada menos do que o real”, cumprindo deste modo o sonho que Flaubert tinha para a escrita. A "palavra quotidiana" é a palavra onde arriscamos a pele e que, por via disso, se opõe ao reino bem contemporâneo da excitação, onde tudo se exibe, e nada se vive, o que não passa de um sono da razão, ou de uma congelação dissimulado do mundo. Estamos hoje, de facto, totalmente familiarizados com um mundo, onde já não há acontecimentos, mas apenas notícias, com a gigantesca máquina da tecnologia informativa a produzir, não o novo mas a sua fantasmagoria, não o novo mas a novidade.

Cenas e Vistas d’A Brasileira dá-nos a conhecer, no quotidiano de um café, ao longo de todo o século XX e primeiras décadas do século XXI, os estados de alma flutuantes da cidade de Braga, ou seja, a sua atmosfera social, sendo a atmosfera uma rede de forças materiais e espirituais. Ordenando e dando sentido às forças anónimas e dispersas da nossa época, Cenas e Vistas d’A Brasileira é uma realização exímia da atmosfera social da cidade de Braga, que não se limita a ser o reflexo do nosso tempo, criando antes a sua expressão. Este livro atinge, sem dúvida, a realidade histórica, encerrando em si a garantia da sobrevivência da nossa época, o que também quer dizer, a garantia da nossa sobrevivência.

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