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Braga, quinta-feira

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Saudosa Infância

Os bobos

Conta o Leitor

2013-09-19 às 06h00

Escritor Escritor

Luna Braga

C omo tanta gente, ainda hoje gosto de admirar as estrelas que cintilam bem lá no alto dos céus. Então, quando somos crianças, imediatamente nos pomos a contá-las, como se realmente fosse possível vê-las todas. E quando descobríamos alguma mais brilhante, gritávamos:
- “Aquela é minha! Eu é que a vi primeiro!”
Curiosamente, as pessoas mais velhas, que sabemos encerrarem em si toda uma sabedoria, produto das experiências vividas pelos seus longos anos de existência, logo nos advertiam:
- “Não se deve contar as estrelas, porque Deus não gosta”. E nós lá nos aquietávamos, pensando seriamente que poderíamos sofrer um castigo, como o nascer dos feios cravos nos dedos.
- “Mas podemos olhar para a lua, não podemos, Comadre Ana”? - perguntava eu a uma senhora já idosa, que ajudara, quando rapariga, a tomar conta do meu pai, ainda com poucos meses.
- “Olhar para a lua, podem; é a casa dos anjos que velam por nós”. Nessa altura, eu e os netos dela, imaginando esses seres de asas branquinhas, como víamos nas procissões, sentávamo-nos por breves momentos no degrau da porta de casa dos meus pais, (no Baixo Alentejo, perto de Beja), à luz amarelada de um velho candeeiro público.
Porém, pouco tempo ficávamos entregues a complicados pensamentos, pois, imediatamente, e como era próprio da nossa pouca idade - 7 e 8 anos -, o nosso sentido ia para a brincadeira. Corríamos para ver quem chegava primeiro ao fundo da rua mal empedrada e de terra na sua maior parte, mal iluminada e ladeada por estreitos passeios, onde, devido ao calor do verão, alguns habitantes da referida rua se vinham sentar ao fresco, nas pitorescas cadeiras alentejanas de madeira pintada com flores coloridas.

De início éramos apenas três: eu, o Zé e sua irmã Chinda; contudo, o entusiasmo das nossas vozes e o barulho das nossas correrias, em breve faziam juntar mais garotada e, então, brincávamos, juntos, meninos e meninas. Jogávamos ao pé coxinho, às escondidas e ao agarra. Enfim, não podíamos estar quietos e no jogo da macaca, de vez em quando algum de nós fazia batota.
Havia, na pacata vila, duas escolas, de edifícios juntos, mas as aulas não eram mistas. Apenas à hora do recreio, nos conseguíamos avistar, apesar do alto muro de separação.
A Comadre Ana era uma velhinha muito engraçada. Já a conheci assim, idosa, sempre de roupa preta e um lenço de igual cor, atado sob o queixo, além de uns óculos muito graduados. Estava sempre disposta a aturar-me e, embora eu não fosse traquina, a minha mãe sempre tinha o cuidado de avisar para eu não a importunar.

Logo de manhã, após tratar do marido que se vinha sentar na sua velha cadeira, junto à porta, para conversar com quem passava, lá vinha a Comadre Ana, toda bem disposta, ajudar a minha mãe nas tarefas da cozinha. O pior é quando ao almoço havia a célebre açorda de alho! Era um verdadeiro suplício para o meu paladar!
Muito eu gostava que ela jogasse às cartas comigo - ao burro deitado - e delirava quando no fim do jogo restavam muitas cartas nas suas mãos. Por cada uma das cartas eu fingia dar um puxãozinho de orelhas naquele rosto que o tempo sulcara de rugas e a Comadre Ana ria como uma criança, lembrando, talvez, a sua travessa meninice.

Sem saber ler nem escrever, ninguém lhe fazia, como se costuma dizer, o ninho atrás da orelha, sendo muito despachada no falar. Tinha, claro, dificuldade em fixar nomes fora do normal. Um certo dia, nasceu, na nossa rua, um menino cujo nome era, para si, muito esquisito e as pessoas achando graça à sua maneira de falar, perguntavam-lhe, já com o riso a assomar nos seus rostos
-“Ó Comadre Ana! Como é que se chama o moço que nasceu esta semana à mulher da drogaria?
-“ Eu não sei bem, mas parece-me que é Remelgo!” O nome do garoto era afinal Romeu, uma novidade naquele meio. Claro que choviam as gargalhadas e as palavras que ela lhes dava de troco não seriam, segundo se constava, as mais apropriadas, mas ninguém levava a mal. Ela própria contava as partidas que fazia em recuados tempos, quando com 17 anos já espigadotes e desejosa de se reunir às amigas, ao domingo, no jardim da vila, acabava por beliscar seriamente o meu pai, para que este chorasse e poder, assim, ver-se livre dele entregando-o à minha avó e dizendo:
- ”Minha senhora, o menino hoje não se dá comigo!” Entretanto, a marota comia o pacote de bolachas destinado a acalmar o meu pai se acaso chorasse, pois efectivamente ele chorava bastante, por tudo e por nada.

Com os netos não tinha esta simpática velhinha tanta paciência como para comigo. Eram fruto do casamento da sua filha Felicidade (afilhada de casamento de meus pais) com o Zé “Espanhol”, que fugira à Guerra Civil de Espanha e abrira, aqui nesta nossa tranquila vila alentejana, uma mercearia.

Lembro-me, ainda, com alguma nitidez passadas que são algumas décadas, de um dia de Natal, à tardinha ela nos contar que a neta, estranhando a pobreza dos presentes no seu sapatinho que havia deixado de véspera na chaminé, - o Menino Jesus só nos trazia os brinquedos quando fôssemos dormir - se deu ao trabalho de espreitar bem lá para o cimo, na esperança de que algum presente tivesse ficado preso na entrada da dita chaminé.

Abençoada inocência dessa nossa meninice que na verdade tinha um encanto tão especial que o simples recordar da mesma nos faz, e a mim muito especialmente, (tinha sempre mais uma linda boneca) envolver num manto de doce encanto e magia. Pensávamos que o céu estava cheio de brinquedos!

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