De alunos para alunos no Conselho EcoEscola da ESMS
Escreve quem sabe
2020-12-04 às 06h00
Agora que a metamorfose tomou conta da escola, puxo pelos fios da memória e reviro-os como se o tempo conseguisse coagular. Vou até Paris. É nos arredores da cidade luz que entro pela primeira vez numa sala de aula. Filho de emigrantes, fui estrangeiro por largos anos. Não só no país que me viu nascer como nesta pátria que amo e onde habito. Só quem viveu nesta “barriga de aluguer” consegue ler estas palavras com a alma do olhar. Não é só a crueldade da tenra idade que magoa. Os graúdos fazem questão de picar onde mais dói. Se juntarmos a isto o complexo cultural, temos os olhos a jorrar água.
A contrastar, estão os momentos de deleite. Aqueles que ficam. É por lá que fixo a minha primeira canção de menino. Sentado na roda da praxe, cantarolava: “Savez-vous planter les choux à la mode, à la mode? Savez-vous planter les choux à la mode de chez nous?”. Foi o meu hino francês que ainda hoje me provoca um sorriso desmedido e que agora, pela primeira vez, torno público.
Foi da geração da mala de cartão, aquela do meio milhão que desembarcou em Paris nos anos 60, a mesma que ficou atolada nos bairros de lata de Champigny-sur-Marne – o “enclave português”, maior bidonville da Europa que chegou a ter 15 mil pessoas amontoadas num terreno baldio de 45 hectares –, Nanterre ou Saint-Denis, que saí para o Mundo. Por lá ouvi as histórias que podem ser partilhadas. No entanto, à medida que fui crescendo, cedo percebi que há outras que vomitam. Os dias foram de tal violência que deixaram cicatrizes que tresandam. Estas, jamais serão contadas. Há uma lâmina, escudada em arme farpado, que impossibilita saber mais. Para quem nunca lá esteve, para quem nunca nada viu, aconselho que apreciem o espólio de Gérald Bloncourt, falecido em 2018, o homem que mais retratou os bairros de lata portugueses. A herança é tão notável que este fotojornalista, nascido no Haiti, foi condecorado com o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique, pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
Sempre que visito França, apaziguo-me. Porém, houve um tempo que andei magoado. Sentia-me machucado pelas dores da infância. Serpenteava em mim um tambor que zurzia as vozes que ouvi, o tom que escutei e o olhar que observei. O tempo curou. Tudo está arrumado. No devido lugar. Aquele onde a chave se perdeu.
Habito neste notável país desde 1982. A viagem que me trouxe teve o cheiro do Outono. Lembro-me de olhar pela janela do carro dos meus pais e ver a brandura das folhas em dança. Havia no céu a melancolia que descobri, anos depois, em Debussy, o homem que sonhava com um piano sem martelos. Dentro da viatura, embalados pela voz de Linda de Suza, trazíamos a semente do trabalho e a certeza de que a felicidade era portuguesa.
Quis vir. Deixei o que hoje conservo. Pouco mais foi relevante. As contas são fáceis de fazer e quando assim é temos o espírito temperado. Não houve sobressaltos, desamores ou outros que tais. Apenas uma ilha que construí nos arredores de Paris. Nela fui o menino de olhar sem espanto. Naqueles caminhos onde sobrevoavam patos bravos, ganhei a força que hoje me leva a resgatar o melhor de mim.
As memórias estão colocadas numa mala de cartão. Nela afago a saudade. Revisito os livros debaixo do braço como lembro os amigos dos castelos de areia, os primeiros pontapés de bola, os despiques pela melhor história e o interminável olhar de uma nação que abrigou os clamores de um país roto de aconchego. Uma França inigualável que acolhe, como nenhum outro país, o preto e o branco e que foi o alicerce para Portugal não morrer de fome pós Estado Novo. Há dívidas eternas. Esta é uma delas. Doa ou não doa a quem estiver a ler. Et voilá!
20 Janeiro 2021
19 Janeiro 2021
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