A Cruz (qual calvário) das Convertidas
Ideias
2020-02-24 às 06h00
Não era necessário dizer nada. Bastava observar o olhar de Marega em pleno estádio D. Afonso Henriques. Ali estava o rosto de uma profunda revolta que finalmente rebentava diante de todos, em planos televisivos a transbordarem de indignação. À sua volta, jogadores, treinador e alguns elementos da equipa técnica tentavam dissuadi-lo de sair das quatro linhas. Não seria isso o mais assertivo. Aquilo que se esperaria seria que ambas as equipas abandonassem o relvado. Porque não estava em causa um jogo, mas a dignidade humana de gente que apenas é diferente na cor da pele. E que é enxovalhada frequentemente por todos nós.
“Um negro português não faria o que Marega fez. Estamos habituados a meter para dentro”. A confissão é puxada a título na reportagem que a jornalista Fernanda Câncio publica esta semana no “Diário de Notícias”. Os seis afrodescendentes aí citados dizem ouvir com regularidade comentários racistas sobre si. A aprendizagem que fazem é a de ganharem alguma indiferença perante tamanha violência. “Sempre houve racismo e sempre vai haver. E sempre houve no futebol e no desporto. Vamos aguentar o resto da vida com isso”, diz um dos entrevistados. O conformismo é o traço dominante. Nivaldo, nascido em Portugal há 14 anos, assegura que o episódio Marega não suscitou qualquer debate na sua escola onde se misturam alunos de vários países. Os professores não consideraram isso relevante. O jovem conta ainda que os colegas falaram nos intervalos da reação de Marega, mas não valorizaram muito o comportamento racista dos adeptos. Curioso...
Na edição deste sábado, o “Expresso” escreve que uma pequena equipa de procuradores do Ministério Público especializada no combate à violência no futebol estava no estádio D. Afonso Henriques no momento do jogo com o Porto e que ficou surpreendida com a violência verbal que ali testemunhou. Os comentadores que faziam o relato da transmissão televisiva não demonstraram tal estupefação, já que nada assinalaram até à reação de Marega. Na mesma peça, os jornalistas citam alguns operacionais da PSP que são unânimes em considerar as imitações de sons de macacos, as ofensas e os cânticos racistas como uma prática recorrente nos estádios portugueses. Que, até hoje, nunca suscitaram um reparo por parte de ninguém.
Confesso que me incomoda esta passividade. De todos. Também dos jogadores no momento da revolta de Moussa Marega. Ficaria rendida ao FCPorto, se a equipa tivesse saído em bloco no estádio. E, mais ainda, se o Vitória acompanhasse tão nobre gesto. Os mais puristas atirarão para o debate enquadramentos legais que impedem tais atos, mas que importa isso, quando se espezinha em público alguém? Não deveremos parar tudo e gritar, ainda que simbolicamente, a nossa indignação?
Marega pôs o país a refletir sobre aquilo que fazemos no espaço público, nomeadamente nos estádios. Dever-se-ia também arrastar o debate para aquilo que se diz em programas televisivos que têm o futebol como tema central. Ontem, na edição da “Notícias Magazine” que elege como tema de capa este “herói em tempo de guerra”, eu própria falava da banalização de formatos em que comentadores ligados aos três principais clubes se digladiam com berros e discursos incendiários. Há, na verdade, um clima inflamado à solta que permite fazer (quase) tudo. Não pode ser.
Devo confessar que não acredito que se consiga reverter este estado de coisas. O nosso olhar sobre os afrodescendentes parece padronizado. E as redes sociais, onde cada um se permite fazer e mostrar tudo, neutraliza reflexões mais aprofundadas. Felizmente houve este gesto de Marega para gritar a partir de um relvado isto: basta! Basta de comportamentos indecorosos! Basta de tanta violência! Basta de fazer de conta que Portugal é um país imune ao racismo. Não é. E isso é uma vergonha.
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