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Braga, sexta-feira

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Sexta 13

Órfãos de Pais Vivos

Sexta 13

Escreve quem sabe

2022-05-13 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

Está de volta o maior espetáculo de rua de Portugal. Acontece ao longo do dia de hoje na capital do Barroso. Um frenesim que coloca Montalegre no topo da atração nacional sob o chapéu do conhecido padre Fontes. Um ser singular, visionário, que rompeu com doutrinas e superstições.
Levada à rua pela primeira vez, como evento público, em 2002, a “Sexta 13” cedo conquistou não só a franja amante do misticismo como todo o apreciador de um produto singular. Idealizada e concebida no interior do castelo de Montalegre, não demorou muito a galgar a fronteira deste monumento nacional para abrigar todo o casco histórico desta vila transmontana.
Este ano acontece uma única vez, é a primeira pós-covid e tem a particular curiosidade de celebrar 20 anos. Um cocktail irresistível de uma catarse que, num só dia, reúne perto de 50 mil pessoas que colocam em alvoroço a bonomia deste pedaço de reino maravilhoso como o definiu Miguel Torga.

Quem já teve o privilégio de viver por dentro esta celebração sabe do que escrevo. Uma noite de memória segura envolta numa metamorfose constante, com a hotelaria a esgotar, o pequeno comércio a esfregar as mãos de contente, uma espécie de purgação sendo, a par da Feira do Fumeiro, a ideia mais aglutinadora deste concelho transmontano. Um cartaz sedutor que associa a cultura popular aos desafios da contemporaneidade. É, muito provavel- mente, o mais disseminado exemplo da reinvenção das tradições populares de Trás-os-Montes.
Não obstante a doença, o mais desconcertante padre deste país continua a ser o fio que liga toda a máquina. Uma bandeira do território que pulveriza o nome da terra, potencia os setores económico e turístico ao mesmo tempo que perpetua a identidade do povo barrosão.

António Lourenço Fontes é uma lenda viva. Um homem à frente do tempo. Faz mirrar a indiferença. Arregala o espanto. Nos anos 70, já registava os serões tradicionais onde o fiadeiro de contos e estórias do arco-da-velha preenchiam os rigores do Inverno. De burro ou de cavalo, espalhava a fé. Mais tarde chegou o Mercedes que ainda hoje preserva passados 40 anos. Um fazedor de história. Andou pelo Mundo. Contactou e privou com culturas esdrúxulas.

É neste caldo – por entre contos e lendas, magia e superstição, trocadilhos e lengalengas – que coa os primeiros sabores de transmissão da cultura popular barrosã. 1983 é o ano que desponta um congresso que coloca a aldeia de Vilar de Perdizes no mapa português. Um rastilho que fez explodir uma região órfã de atenção. A tradição oral, as ervas, o sotaque, tudo entrava pelo gravador da imprensa. O ser diferente passou a ter procura e charme.
Embalado pela visibilidade do padre, Montalegre tornou-se desejo, apetite, deslumbre. Adjetivos que ancoraram investimentos. Foram erguidos restaurantes e casas de turismo rural que abrigam, ao fim de semana, centenas de pessoas à cata do som do pássaro, do zurrar do burro, da vezeira, do toque do sino, das chegas de bois e dos cheiros de uma gastronomia única.

É com esta raiz que emerge o 13. Um número irregular que desde a antiguidade clássica é portador de azar. Basta lembrar as sagradas escrituras onde, no capítulo 13 do livro do Apocalipse, há referência ao anticristo e à besta. Ao associarmos sexta-feira, esta recorda o dia em que Jesus foi crucificado. Dito de outra forma, se somarmos o dia da semana de azar (Sexta) com o número de azar (13) resulta, à luz da tradição, o mais azarado dos dias.
Terra de fronteira com Espanha, Montalegre tem sabido aproveitar o trabalho em rede com os vizinhos galegos. Uma relação umbilical que procria uma tempestade perfeita. O enredo da “Sexta 13” bebe na récita do esconjuro – poema/feitiço de raízes galegas – que embriaga a atmosfera mística em volta deste imaginário coletivo.

Apoteótico, o espetáculo teatral – inicia na última hora do dia – jorra luz e assombro. Com ele, o público salta, bebe e pinta a noite. Vozes que gritam e gesticulam, avançam e recuam. Frases em estrofe, soletradas em contos e lendas ancestrais do Barroso e Galiza.
Montalegre é terra diferente. Há nela o silêncio da paz e o tambor do voo. Quem a visita, não a esquece. Gosta de acolher. Tem a timidez da alma grande. Conquistada, oferece o melhor que tem. Felizes os que acreditam sem ver. Imortais os que lhe tocam e acreditam.

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