Correio do Minho

Braga, sexta-feira

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Tão só (a carta)

Expropriaram parte do meu terreno. E agora?

Conta o Leitor

2021-08-31 às 06h00

Escritor Escritor

Carlos Alberto Rodrigues

Agora que a última cortina está prestes a descer, e com ela o final do espectáculo está muito perto, quero desalmadamente lembrar aqueles momentos que me fizeram homem, que me moldaram o pensamento sobre coisas existenciais e do porque? de tanta dúvida sempre envolta em interrogaço?es em forma de passos dados precipitadamente.
Contudo, na?o voltaria um único dia na minha vida, e lembranças boas na?o me faltam. Na?o voltaria a? infância - mesmo sabendo que dessa forma na?o mais sentiria o orgulho de mim quanto senti no dia em que ganhei o meu primeiro brinquedo comprado numa romaria, aos 6 anos, ou descobriria os segredos das brincadeiras por entre o milho e as árvores do pomar de meus avós, as primeiras paixo?es...
Na?o voltaria a? adolesce?ncia, quando fiz minhas verdadeiras amizades e amores e aprendi um pouquinho mais sobre quem eu era - e sobre quem eu na?o era.
Contudo, na?o voltaria ao dia em que sonhei com os filhos que nunca tive, que seriam os dias mais felizes da minha vida, de uma felicidade infinita inédita, porém nunca provada.
Mas, por outro lado, experimentaria um amor que eu nem sonhava que podia ser ta?o intenso. Na?o voltaria ao dia de ontem - e ontem eu era mais jovem do que hoje, ontem eu era mais romântico do que hoje, ontem eu nem tinha pensado em concertar o mundo e suas maleitas, cada vez mais próximas de nós próprios.
Na?o tenho saudades de mim quanto mais sonhador e esperança no amanha? melhor.
Quero agora um pouco de tempo que seja para ter lucidez capaz de transmitir o que me vai na alma.
Agora que os banquetes e as festas acabaram e com eles os sorrisos tendo sido substituídos pela dor, pelo padecer e mágoa.
De e sobre tanta coisa reflicto por estas alturas. Nunca fui homem dado a tristezas nem com vontade de morrer de véspera apesar de conhecedor de minhas limitaço?es. Sempre amei o instante de cada momento. Olho através daquela janela que se abre sobre o escuro, encoberto pela brisa nocturna e pela qual consigo aspirar a algumas estrelas cortadas pela nuvem que anuncia um dia chuvoso. Tudo me parece mais lento como o morrer lento dos dias, do sol, os pequenos pardais, das flores e até da espera que cada vez mais me desespera por saber que va?o ficar todos bem...
Como dizia o outro precisamos da humildade de precisar...
Julgava que para me inculcar como teu apaixonado sempre julguei que teria de sacrificar alguma das paixo?es de minha vida. Complexo? Talvez, mas afinal qual o romance que na?o traz ratoeiras improváveis ou por outro lado, alegrias inesperadas, como que a afirmar que depois da tempestade vem sempre a bonança. Ainda pensei que na?o seria digno de ti por me faltarem bens de fortuna, desta Apenas a herdada nos genes, fortuna, honestidade e humildade como sempre me ensinaram. Nem estava disposto a ocultar-te tal desfaçatez, porém sempre souberas que essa era a única fortuna que tu querias. Eu amava. Aí estava uma palavra
que estará sempre envolta nos maiores mistérios deste e de outro mundo. Sei que na?o ficaste incólume a tal revelaça?o. Também senti teu coraça?o retribuir com maior intensidade do que por norma acontece nestas idades.
Porque jovem na minha idade, sinto esvanecer o tempo por entre os dedos metálicos e ossudos de minhas ma?os. Ténue linha entre a vida e algo que mais parece um fim anunciado. Sinto-me consumido pelos dias que passam sem me olhar, como se um vazio me invadisse me possuísse qual demónio que precisava de ser exorcizado.
Na?o creio que sejam estes dias de depressa?o, de desespero onde a economia peca por escassa e os valores se va?o esvanecendo.
Parece que em dois anos se passaram coisas que deviam ter demorado décadas. Por isso continuo a referir que este tempo na?o quer nada comigo.
Limitou-me ao meu quarto e a minha cama.
Na mesa-de-cabeceira jaz uma vela que a noite esgotou, como um último sopro.
Sem nada fazer, sinto-me cansado, certamente porque o cansaço psíquico seja mais dilacerante que o físico e o que deixe menos margem de manobra para melhoria do ego, do corpo. A recuperaça?o já na?o entrava nos meus sonhos. Tinha que receber com um último esgar o meu destino.
Quis atingir a mesa-de-cabeceira. A custo consegui recolher a folha que também ela permanecia inerte desde há algum tempo. Consigo ler, a custo:
Ah Mente Doente que quer pensar
Outra e outra vez num pensamento cheio de esperança Mas nunca uma mente que mente mas que foge
E que demora em saber o que deve fazer
Pensa
No Amor que nunca faltou, no apoio ou no Carinho Dado pelos que te amaram
Uma Certeza!
Certo de que encontrarás quem parece ter fugido E na?o, na?o sa?o iluso?es dessa mente que mente Dessa Mente Doente e incerta
Eles esta?o lá!
Assim como o teu amor que teve sempre jardim, rosas e camélias. Um amor que dependeu de meu desejo, uma criaça?o minha. Nesse amor, perdi muitas vezes a cabeça, deliberadamente.
Perguntei-me, a?s vezes, debalde, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor na?o me perguntei, contestei e contesto, ainda. A resposta está estampada na distância e na frieza dos sorrisos, na frouxida?o
dos abraços, na lentida?o dos passos, na indiferença dos "Bom dia", quase que sussurrados, apenas.
Sobra covardia e falta coragem até para se ser feliz. A paixa?o queima, o amor enlouquece, o desejo trai. Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas na?o sa?o. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar na?o teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza. O nada na?o ilumina, na?o inspira, na?o aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.
Ainda quis acordar mais uma vez, porém na?o consegui resistir. Deixei-me ir lentamente. Ainda tive tempo de ver rebobinado um pequeno filme de minha vida. Na?o faltaram as pessoas que eu mais amei: Pai, Ma?e, Irma?s e restante família e tu no fundo deste filme que logo terminou quando fechei os olhos, mais uma vez.
Será que podia voltar a acordar?
Agora as estrelas na?o sa?o necessárias: apaguem-nas todas; Já podem fazer desaparecer mares e oceanos;
Pois agora tudo é inútil. E prescindível.
Ta?o só queria poder fechar meus olhos para na?o ver os teus.
Sim, porque sei que quando me for, levarei um pouco de ti e deixarei um pouco de mim e porque me ensinaram que quem fica na memória de alguém na?o morre.
Apenas dissabor por perder a memória, que guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela na?o perde o que merece ser salvo.
Porém, as minhas últimas palavras seriam para referir o que importa é que sempre é possível e necessário 'Recomeçar'.
E na?o, na?o se preocupem ou ta?o pouco chorem, pois como alguém sabiamente referiu um dia: "A morte é só uma mudança de estado. Depois dela, passamos a viver em outra dimensa?o”.
Sinto-me velho. Na?o é de espantar, estou mesmo velho. Velho, vazio de querer, usado, gasto, cansado, triste pela cade?ncia rápida dos dias. Sei que o meu fim se aproxima, a passos largos.
Dentro de dias na?o serei mais do que uma recordaça?o saudosa e depois cada vez mais distante até se esfumar, enfim. Ficara?o as fotografias, os textos escritos e as melhores memórias e recordaço?es ainda guardadas algures no íntimo do Ser...
O que eu era continuarei a ser, dentro de cada um que me conheceu.

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