Entre a vergonha e o medo
Ideias
2016-11-15 às 06h00
É impossível não ceder à tentação de falar e escrever sobre o acontecimento político-mediático do ano. Sendo certo que os milhentos comentários, opiniões e teses começam a atolar os jornais deste mundo, não menos certa é a pulsão que obriga cada um de nós a dizer qualquer coisa sobre a surpreendente eleição de Trump como presidente dos E.U.A. e, por arrasto, “líder do mundo livre”.
Li e reli várias opiniões, nacionais e estrangeiras, sobre a eleição de alguém sobre quem se diria que “até o rato Mickey” seria capaz de vencer em eleições livres e justas, recuperando uma conhecida e igualmente mal sucedida previsão política, curiosamente a propósito de um congresso partidário decorrido em Braga.
Dos vários argumentos aduzidos para justificar a vitória de Trump, foram os de Miguel Poiares Maduro (MPM), em texto do Expresso, aqueles que mais fizeram sentido para mim. Defende MPM que a ascensão de Trump ao poder representa o falhanço da combinação democracia-resultados, ou seja, a nossa democracia, sacrossanta nos seus fundamentos e inquestionável nos pressupostos, não foi capaz de responder com resultados aos anseios da população, estes, por sua vez, cada vez mais olham para esta falha como a materialização da falta de qualidade da democracia. Nas suas palavras: “Problemas na qualidade da democracia impedem-na de produzir resultados E se a democracia não produz resultados a qualidade da democracia é posta em causa.”
Infelizmente (para todos nós), as respostas ou resultados a que MPM se refere são aqueles que mais imediatamente se conseguem perceber e pelos quais mais facilmente se julgam políticas e políticos. É desse imediatismo, dessa relação simples entre causa (política implementada) e consequência (sucesso imediato), que os políticos atuais se alimentam, não dando espaço a qualquer folga temporal entre implementação de determinada medida e obtenção de resultados.
Será por isso, digo eu, que tem sido tão difícil chegar a acordos de regime sobre reformas necessárias, as tais que representam custos no presente mas que permitem um horizonte de esperança no médio e longo prazo. Tudo isto porque se ligou o tempo mediático ao tempo político, punindo-se duramente quem às 20h00, no jornal da noite, em prime-time, não tem novidades para dar, ou uma tirada genial no domínio da tática política, mas que nada resolve em termos práticos.
O comentador de domingo será, porventura, a figura mais perfeita desta completa distonia entre política e seriedade. Não deixa de ser paradigmático que os agentes políticos tenham mais temor a 30 minutos de figuras políticas acabadas ou recauchutadas do que a milhões de eleitores. Os tais que lhes conferiram o voto para encontrarem soluções de qualidade, para que a democracia continue sólida e a sociedade coesa.
A este imediatismo junta-se a hipersimplificação da política, a estupidificação da mesma, tão claramente disposta no mote inglês repetidamente erigido a hino do marketing político “Keep it simple, stupid” (KISS). É certo, e os “marketeiros” têm razão quando o assinalam, que o tempo mediático é precioso e curto e que o eleitorado, leia-se, “povo”, não tem propriamente disponibilidade para ouvir discorrer sobre a quadratura do círculo e as infinitas hipóteses de resolver problemas tão complicados como este. Mas isso não significa que autorizemos um universo político assente na frase curta e no “soundbyte”.
É que a hipersimplificação da política, como bem nota MPM, não deixa espaço para o debate, para o diálogo, para o compromisso. E como bem se viu nos E.U.A., se os agentes políticos querem jogar esse jogo, o mais certo é perderem-no para alguém com muito menos escrúpulos e disposto a tudo para o vencer. As vistas curtas que esse tipo de perspetiva alimenta tornam virtualmente impossível qualquer hipótese de entendimento sobre matérias essenciais que podem até não oferecer votos nem resultados imediatos, mas que permitirão aos eleitores perceber que se fez um esforço no sentido de valorizar as propostas sólidas e de valor acrescentado que cada quadrante político ofereceu no quadro institucional regular.
E não é preciso prescindir de um espírito aguerrido, das convicções ou de um alto grau de pureza ideológica para reconhecer o que de positivo pode ser oferecido pelos adversários políticos. Pelo contrário, é justamente no seio de balizas ideológicas fortes que se constrói uma fortaleza de carácter que estabelece os limites a partir dos quais cada um de nós diz “não, a partir daqui não avanço/recuo”.
O pragmatismo tão em voga em muitos discursos não é um mal necessário, mas é um condimento importante na receita democrática que nos une e separa civilizadamente, a cada momento. Prescindir de um certo grau de pragmatismo ofusca a realidade e tolda a capacidade de perceber o mundo tal qual ele se nos apresenta e não como gostaríamos que ele fosse. Ao mesmo tempo, desconsiderar essa dimensão liberta espaço para que o pragmatismo mais indigente se torne programa político e conquiste os eleitores cada vez mais ávidos de respostas claras, sem filtros politicamente corretos e que aportem um mínimo de esperança na resolução dos seus problemas concretos por claro contraste com “os políticos do costume”. Ora, o que é Trump se não a hiperbolização do pragmatismo, da solução fácil, da resposta imediata, do soundbyte, no fundo, a resposta exacerbadamente simples aos problemas mais complexos?
Como assinala MPM, para lutar contra este estado de coisas não precisamos de uma reforma do sistema político, mas antes de “mudar a cultura da nossa classe política e dos media. Se não o fizermos os cidadãos acabam por preferir qualquer coisa a “esta” política”.
13 Junho 2025
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