Robotização e Migrações
Voz aos Escritores
2025-03-14 às 06h00
A minha Mãe passou a ser minha filha e eu, para ela, às vezes sou filha, outras Mãe, ou uma desconhecida que ela olha com estranheza. A memória da minha Mãe enovela-se em mundos insondáveis, mundos em que estou presente, noutros não. A memória define-nos e o esquecimento magoa. Mas somos nós, os lembrados da vida, que temos de nos enquadrar na existência dos que a olvidaram e permitir que sejam livres ainda que acompanhados. A minha Mãe habita numa pequena vila de cinco hectares, um lugar-experiência situado no sudoeste de França, perto de Dax, pensado e edificado em 2020 para doentes de Alzheimer. Tem 120 moradores com idades entre os 40 e os 104 anos, 120 cuidadores e 80 voluntários; uma vila-residência e local de estudo dos cientistas que se dedicam a pesquisar sobre a doença ladra de identidades. É um lugar bonito, rodeado de vegetação, com lagos e animais domésticos, como o casal de burrinhos, o Junone e a Janine, a quem eu e a minha Mãe damos cenouras. Está seccionado em quatro zonas, cada qual com 4 casas onde habitam seis a oito pessoas. Tem biblioteca, mediateca, supermercado, ginásio, cabeleireiro, café e restaurante. Cada casa é supervisionada por enfermeiras geriátricas, chamadas mordomas, cuidadoras que zelam pelo bem-estar dos utentes. As mordomas são pessoas especiais, pacientes e humanas. Auxiliam os utentes nas suas necessidades sem a pressão do tempo, deixando-os viver ao seu ritmo. Não há hora certa para se deitarem, levantarem, lavarem ou comerem. Cada um é dono do seu próprio ritmo, ninguém interfere nos seus rituais e nas suas preferências. Se querem comer em casa, a mordoma elabora a lista de compras dos artigos necessários que o utente obtém no supermercado sem ter de levar dinheiro. Como a minha Mãe nunca foi adepta da culinária, almoçamos e jantamos no restaurante da vila num ambiente acolhedor. Posso visitá-la em qualquer dia sem imposições de horários. Passeamos juntas pela vila, mesmo no inverno, e cruzamo-nos diversas vezes com a madame Lapain que é hiperactiva, uma das caraterísticas da doença. Na sua fisionomia de maratonista a madame Lapain caminha vinte quilómetros por dia sob o olhar atento da mordoma de serviço. Diz-nos bonjour sempre que nos ultrapassa no seu admirável passo acelerado, talvez cinco ou seis bonjours sejam a sua média diária de nos cumprimentar.
Eu e a minha Mãe assistimos a muitos filmes, alguns bastante repetidos, mas ela insiste que são novidades e emociona-se nos melodramas que vê uma e outra vez. Garante-me que teve um caso com o Brad Pitt e que o meu Pai é o Leonardo DiCaprio que lamentavelmente a deixou viúva perecendo num naufrágio. Eu digo-lhe que me alegro por o meu Pai ter sido um homem tão belo.
Nos verões, sentadas junto ao lago, leio para a minha Mãe os livros que requisitamos na biblioteca, melhor dizendo, o livro, O Amor em Tempos de Cólera do Gabriel Garcia Márquez, não só por a minha Mãe ser uma romântica, mas por que a Mãe do protagonista tem Alzheimer e a minha Mãe, na sua lucidez intermitente, apercebe-se disso, mas não se entristece. Eu não a contradigo nas escolhas. Aqui os utentes não são contrariados. As mordomas e os voluntários acompanham-nos no dia a dia e até pelas noites, quando alguns não querem dormir e passeiam pelas casas. Quando os veem mais agitados não lhes dão calmantes, conversam com eles, fazem-lhes chá, cozinham bolachas e bolos, contam-lhes histórias, mimam-nos como se fossem meninos e meninas grandes. Na verdade, a maioria dos que têm a sorte de envelhecer, nascem e morrem crianças. Aqui não há abandono. Aqui não há solidão. Aqui não se espera a morte no arrastar dos decrépitos. Vive-se e desfruta-se da idade maior na plenitude da existência. Os neurocientistas que acompanham este projecto, começam a concluir que os utentes da vila não sofrem os agravamentos da doença. Há a estabilização do estado dos pacientes e a quase inexistência de doenças paralelas, assim como menos hospitalizações quando comparados com doentes de Alzheimer internados em outras instituições ou que vivem sozinhos e com escasso apoio geriátrico.
No Velho Continente, onde o envelhecimento populacional é já uma realidade preocupante, a existência desta vila deverá ser um exemplo a seguir por todos os governos europeus.
18 Abril 2025
11 Abril 2025
Com a sessão iniciada poderá fazer download do jornal e poderá escolher a frequência com que recebe a nossa newsletter.
Escolha as categorias que farão parte da sua página inicial.
Continuará a ver as manchetes com maior destaque.
Faça login para uma melhor experiência no site Correio do Minho. O Correio do Minho tem mais a oferecer quando efectuar o login da sua conta.
Se ainda não é um utilizador do Correio do Minho:
RegistoRegiste-se gratuitamente no "Correio Do Minho online" para poder desfrutar de todas as potencialidades do site!
Se já é um utilizador do Correio do Minho:
LoginSe esqueceu da palavra-passe de acesso, introduza o endereço de e-mail que escolheu no registo e clique em "Recuperar".
Receberá uma mensagem de e-mail com as instruções para criar uma nova palavra-passe. Poderá alterá-la posteriormente na sua área de utilizador.
Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos.
Deixa o teu comentário