Entre a vergonha e o medo
Ideias
2022-06-28 às 06h00
Tal como descambou e continua a acentuar-se a derrocada da doutrina dual estatal na China, por cá a intenção de coabitação pacífica entre dois sistemas – o Serviço Nacional de Saúde e o setor privado (onde incluo as IPSS) – parece, também, erodir-se diariamente, com o falhanço das políticas públicas neste domínio.
As notícias repetidas de urgências encerradas por falta de médicos tornaram-se o “pão nosso de cada dia” e, se no passado, apenas os concelhos do interior pareciam sofrer com a litoralização dos profissionais, agora o mal alastrou-se à capital do país e a pontos insuspeitos de desertificação demográfica ou médica, como a nossa própria cidade.
O caso é ainda mais chocante porquanto especialidades críticas, como a de obstetrícia, fazem parte do lote das afetadas pela míngua de recursos humanos, aguçando o sentido crítico e o alarme social junto da maioria da população, ciente que está da criticidade de uma resposta pronta e tão próxima das famílias quanto possível.
O “pormaior” sórdido da morte de um bebé num serviço de saúde em resultado aparentemente direto do encerramento de uma urgência obstétrica, no centro do país, gerou não só a comoção de muitos, mas sobretudo a revolta dos portugueses a quem não entra na cabeça como pode um país dizer que investe cada vez mais no seu SNS e ter cada vez menos resultados.
É raro não tropeçarmos num concidadão que não tenha já queixas repetidas e adensadas sobre a forma incompleta como o SNS responde a solicitações básicas na prestação de cuidados de saúde.
Ao longo dos últimos anos vimos esfumarem-se promessas quanto à melhoria do número de portugueses sem médicos de família, tendo o Primeiro-Ministro chegado ao ponto assustador de dizer que, perante o falhanço no cumprimento das metas que havia traçado, não se compromete com objetivos concretos.
O que choca nesta declaração de impotência não é tanto o falhanço rotundo, nem sequer o facto assustador de, em sentido inverso, terem aumentado brutalmente o número daqueles que não têm médico de família. O que choca é a pura admissão de incapacidade desacompanhada de um expresso, óbvio e consciente desejo de reverter a situação. Uma desistência que representa um KO técnico, em que quem cai ao tapete são os portugueses.
O que nos sobra, pois, é aguardar, como e com António Costa, que a coisa não piore muito.
Neste país de brandos costumes, não é, por tudo isto, de estranhar que se acentue a clivagem entre dois sistemas, o público e o privado.
Soubemos recentemente que são já perto de 3 milhões os portugueses que subscreveram um seguro de saúde, sendo que, em 2020, mais de 1,2 milhões de funcionários público e seus familiares eram beneficiários da ADSE. Somando-os, temos que perto de 4,2 milhões de portugueses beneficiam de um sistema de previdência na saúde complementar (ou substitutivo) ao SNS.
Se atentarmos no facto de cerca de 45% das famílias portuguesas não pagarem IRS, o que corresponderá, grosso modo, à população que sobra, não coberta por seguros de saúde ou ADSE, então, conclui-se que apenas a metade mais pobre do país depende exclusivamente do SNS. E nem assim o sistema consegue dar uma resposta qualificada e satisfatória.
Claro que estas contas não podem ser feitas desta forma simplista, contudo é cada vez mais óbvia a degradação da confiança no SNS e a crescente subsidiariedade que este assume junto daqueles que podem socorrer-se dos cuidados das entidades privadas. E isto configura o total oposto da vontade dos partidos da geringonça quando, em 2019, se juntaram para alterar profundamente a Lei de Bases da Saúde.
Lembre-se que o desiderato do PS, BE e PCP fora o de tornar cada vez mais residual o recurso ao setor privado, reforçando o estatuto imperial e tendencialmente absolutista do SNS.
Como muitas vezes acontece nos regimes de matriz totalitária, quiseram consagrar em letra de lei uma realidade alternativa que em nada se adequava à situação do país. Também por isso, essas mudanças legislativas tornam ainda mais embaraçosa a situação que agora vivemos, onde se multiplicam tarefeiros e o problema, aparentemente, não é de dinheiro. Que saudades das terríveis PPP’s.
O que não pode continuar é a cegueira ideológica que quis fazer dos privados o filho enjeitado do sistema nacional de saúde, impedindo que os portugueses recebam os cuidados de saúde merecidos e em tempo.
É altura de reclamar que, a par do reforço do SNS, da reponderação dos mecanismos da gestão pública e da revisão das carreiras médicas, se implemente um plano de urgência que, sem preconceitos, recorra ao conjunto da capacidade instalada, nem que de forma transitória, para minorar os problemas estruturais que o sistema público demonstra não conseguir ultrapassar.
Sem isso, é pura utopia falar no final das listas de espera ou no igual acesso de todos aos cuidados de saúde e pura demagogia afirmar a autossuficiência do SNS.
13 Junho 2025
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