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Um paraíso claro e triste

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Um paraíso claro e triste

Ideias

2020-01-27 às 06h00

Moisés de Lemos Martins Moisés de Lemos Martins

Em dezembro de 1940, Saint- Exupéry, o imortal autor de O Principezinho, cruzava os céus de Portugal em direção aos Estados Unidos. Era o ano da Exposição do Mundo Português, o momento apoteótico dos valores marcantes do Estado Novo, com a celebração dos centenários da Fundação e da Restauração da nacionalidade, que comemoravam oito séculos de independência do país (1140) e três da independência reconquistada (1640). A Exposição, na expressão do escritor Júlio Dantas, continha ainda referências a um terceiro centenário, que representava “o fastígio do Império”, ou seja, o seu apogeu, fixado em 1540.
Parando em Lisboa, Saint- Exupéry escreveu em Carta a um Refém, que Lisboa lhe apareceu como um oásis de paz, “uma espécie de paraíso claro e triste”. “Muito se falava então de que estava iminente uma invasão, mas Portugal agarrava-se a ilusão da sua felicidade”.

É curiosa a coincidência entre este “Portugal dos Grandes”, exibido em Lisboa, e o “Portugal dos Pequenitos”, instalado em Coimbra, um jardim temático e pedagógico, mandado construir por Bissaya Barreto e inaugurado precisamente em 1940, com o propósito de retratar, tanto o “país aldeia rural” como o “Portugal-Império”.
Mas, na realidade, tanto o Portugal dos Grandes, como o dos Pequenitos, retratavam um país pequeno, “orgulhosamente só” e ufano de o ser, um país que não passava afinal de uma dona de casa a sonhar com um Império.
Ao emergir, entretanto, “da noite e do silêncio”, naquele “dia inicial inteiro e limpo” (Sophia de Mello Breyner), o país entrou no convívio das nações, pelo que se chegou a imaginar que podia acabar de vez com a mitologia nacionalista e patrioteira de um Portugal de pequenitos.

Eu próprio escrevi, há uns anos, nas páginas deste jornal, sobre três safanões para “Acabar de vez com o Portugal dos pequenitos”: a vitória de Portugal no Europeu de futebol, em 2016; a vinda do Papa Francisco a Fátima e a vitória dos irmãos Sobral no Festival da Eurovisão, ambos em maio de 2017. Hoje, poderia acrescentar o sucesso de Portugal, distinguido, em 2019, pelos World Travel Awards como o melhor destino turístico do mundo pelo terceiro ano consecutivo.

Foi uma crónica redigida em tom maior, a enaltecer a comunidade nacional e as razões óbvias da sua grandeza. Aliás, aconteceu-me isso uma outra vez, quando a Ruth Manus, uma jovem bloguista brasileira, advogada e docente universitária em São Paulo, escreveu no Observador uma crónica sobre Portugal. Reconheci, então, inteira justiça ao rasgado elogio que ela fez do nosso país: “Todo país do mundo deveria ter uma data como o 25 de abril para celebrar. Se o Brasil tivesse definido uma data para celebrar o fim da ditadura, talvez não observássemos com tanta dor a fragilidade da nossa democracia. Todo país deveria fixar o que é passado e o que é futuro através de datas como essa”.

Penso, no entanto, que hoje se justifica uma crónica em tom menor, uma crónica de tonalidade melancólica, porque são bem visíveis no país os sinais da comunidade sem esperança em que nos estamos a tornar, com as instituições manietadas e o nosso regime de legalidade a permitir a imoralidade e o crime. É verdade, parece que não há modo de combater a peçonha que empesta e envenena a nossa democracia, essa praga de portas giratórias entre a política e os negócios, e de reguladores e regulados, com aqueles que hoje regulam a serem regulados amanhã e vice-versa. Interroguemos, todavia, as condições de funcionamento da nossa democracia. Denunciemos esta peste que a envenena. Combatamos a normalização da irresponsabilidade e da impunidade.

Acabam de nos cair em cima o Luanda Leaks e a Operação Éter. Logo se levantaram os média em alterosas vagas. O costume. Fazem-no como se estivéssemos diante de casos inéditos. Mas o Luanda Leaks remete-nos apenas para um Portugal dos Grandes, o Portugal Império, o Portugal que convive com os grandes deste mundo e se alambaza na grande corrupção e no branqueamento de capitais. E a Operação Éter constitui uma espécie de Portugal dos Pequenitos, com uma rede de largas dezenas de autarcas e ex-autarcas videirinhos, a fazer pela vidinha, sonhando castelos de grandeza e fortuna. Um e outro Portugal afundam-nos, todavia, apenas em pequenez.

Existe entre nós uma elite (ou clique?) que nos cerca, umas vezes de modo ostensivo, outras de modo discreto, outras ainda de modo secreto. Mas esta fauna nunca deixou de estar no meio de nós. Neste contexto, Carlos Costa, o Governador do Banco de Portugal, que é o maior regulador do sistema bancário, é um resistente. Deveria ser condecorado. Nunca deu por nada, mas é um sempre em pé. Há uma eternidade que o Estado lhe paga principescamente, e logo a ele que não regula absolutamente nada. É obra! Mas o que se passa com Carlos Costa é mesmo cegueira, ou é antes cumplicidade?

Já vimos isso outras vezes. BPP, BPN, BES… Enfim, vemos isto sempre. No passado, vimos Vítor Constâncio, que esse, sim, foi um cego condecorado, sem que tivesse corado. Passou de Governador do Banco de Portugal para Vice-Governador do Banco Central Europeu! Mas quando julgávamos que já tínhamos visto tudo, alombámos com o Carlos Costa.
Mas é ao caírem-nos em cima casos como o Luanda Leaks e a Operação Éter, que ficamos com a noção exata de que afinal temos navegado na exaltada mediocridade de quem apenas se agarra a uma “ilusão de felicidade”, a ilusão de um “paraíso claro e triste”.

É um facto, nós nunca deixámos de ter as instituições cercadas por uma fauna de empresários, políticos, banqueiros, reguladores, consultores e advogados sem escrúpulos. Vejamos o caso exemplar de Teixeira dos Santos. Foi este Ministro das Finanças que levou Portugal à falência em 2011. Mas isso não o impediu de em 2015 ter sido agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo. E de novo deparámos com Teixeira dos Santos, agora a presidir ao EuroBic, o banco-lavandaria de Isabel dos Santos. Fiquemos, todavia, à espera do próximo capítulo. Que condecoração se irá seguir?
É isso. Queixemo-nos da Extrema Direita. Queixemo-nos de em vez do exercício da cidadania termos agora à porta (ou já mesmo dentro de casa) a multidão, o populismo e o nacionalismo, que fomentam toda a espécie de egoísmo e promovem a intolerância, a xenofobia e o racismo. Com a sanidade da vida pública em risco e manietadas que estão as instituições, “vai um tiro de canhão” para a insustentabilidade da democracia.

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