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Um pequena lucidez

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

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Conta o Leitor

2021-08-19 às 06h00

Escritor Escritor

Rosa Pires

Perdera-lhe já a conta de quantas vezes a assaltara o gesto de as destruir da memória, naquele recanto profundo como se no fundo de um oceano escuro em que os pensamentos teimam em voltar, por vezes, como medusas azuis e brancas na sua esplendorosa transparência. Mas, uma pequena lucidez ou talvez um lampejo de saudade futura, surgia-lhe nas mãos, sempre que esse ser diabólico e invejoso que se apodera por vezes da nossa mente, fazendo por vontade dele e não nossa, atos inconscientes, de que nos arrependemos depois mais tarde, mas já sem volta a dar, para que o passado regresse ao ponto onde ainda seria possível remediá-lo.
Voltava sempre a pegar nelas e relia-as, com a mesma ansiedade como se abrisse os envelopes pala primeira vez, porque eram de certeza, as cartas mais lindas que alguma vez na vida recebera. E que todas as outras, as recebidas, e que guardava somente por respeito, lhe perdoassem a franqueza, por a sua mente doentia libertar toda a tolice interior do quotidiano ao tentar lembrar-se das palavras que respondera, em particular àquelas, porque sentia que eram como se de um tesouro de preço incalculável se tratassem, como diamantes ou pérolas ou simples aço inoxidável. Porque cada momento, palavra ou sentimento pertence ao seu tempo.
E depois imaginava, idealizando, se também teriam guardado as dela, com a mesma delicadeza e sensibilidade e com todo o cuidado resguardando-as do tempo. Do tempo que corrói e as poderia transformar de papel amarelecido em pó, e que o vento levaria facilmente para longe de si e dos seus dedos como areias finas, agarrando-as assim de ambos os lados, desembrulhando-as lentamente, tentando reviver o primeiro momento na ânsia de o absorver de uma só vez, perdurando no bater descontrolado do seu coração a emoção, a arder nos cantos dos olhos e cintilando nas lágrimas quase a descerem salgadas e num nó dentro do peito.
E lerem-nas assim, desejava no seu íntimo que o tivessem feito às dela, não agora, atiradas talvez ao esquecimento nas arrumações no sótão ou numa cave húmida e sombria, mas no exato momento que o carteiro as levara às mãos a quem desejava que as entregasse!
Algumas de amor e outras de sincera amizade, mas todas elas sem menosprezar o seu conteúdo e o destinatário.
Lembrava-se de que escrevera algumas no sentido da reprovação e, outras, por não ter tido coragem de dizer de olhos nos olhos, o que lhe ia na profundez da sua alma. E descobrira anos mais tarde, que a sua mãe lhe lera algumas pelas conversas quando se juntavam todos por altura do Natal, ela, os irmãos, as cunhadas, cunhados, filhos e sobrinhos quando o irmão mais novo lhe perguntara se ainda escrevia aqueles textos que
fora deixando pela casa dos pais. E a sua mãe lhe perguntar, então, que fazia com aquela caixa que ainda permanecia intacta dentro de uma das arcas no seu quarto com as cartas e outros textos da sua juventude! E, sem pensar, tinha dito que esta podia fazer o que quisesse com ela, sem se lembrar já, que mais tarde se poderia arrepender de tal decisão! Pois a sua mãe dias mais tarde tinha mesmo queimado tudo.
Quem poderá adivinhar o futuro e mudar fosse o que fosse? Os dias, os meses, os anos passam e quando se dá conta meio século na vida de uma pessoa passou. Sobrarão as recordações? Os pequenos lampejos de saudades passadas a ameaçar o sossego do futuro? É a vida que passa a passos largos e descuidados como riscas no asfalto de uma longa estrada a uma rapidez vertiginosa e, sem sabermos se o que fizemos estaria certo ou errado ou, se o tempo se foi perdendo em bagatelas, ou se os sentimentos mudam ou se seriam ainda agora os mesmos pelas pessoas que foram passando pela nossa vida, melhor é deixa-los guardados nos seus cantos, os que cada um fizeram parte e nesses foram os mais belos que qualquer outros que poderiam ou vieram depois, porque fizerem parte das emoções que se libertaram e se guardam como marcas que ficam visíveis para sempre quando voltamos a eles, como as cicatrizes na nossa pele que não sabemos em que momentos exatos e a cada instante da nossa vida estas aconteceram.
E depois vinham-lhe à memória os sentimentos cúmplices que uniam os seus próprios pais. As cartas que ela lia do seu pai vindas de França e todos em casa liam e que iniciavam sempre “Querida esposa e filhos”. Do resto já não tinha memória só do início e da caligrafia perfeita do seu pai nas letras desenhadas em caneta de tinteiro. E a forma como nas manhãs que este se ia, pelos meses de outubro ou novembro, antes de partir, passava pelos quartos, ainda de madrugada e em silêncio os beijava, um a um todos ainda a dormir, mas, de uma vez sem saber acordou ainda pequena, mas se deixou em silêncio e de olhos fechados, recebendo a despedida para não quebrar o encantamento e a vontade própria deste, para não lhe verem os olhos a lacrimejar também.
Mas de todas as cartas, a mais original que recebera das mãos do próprio e futuro marido, nos inícios de namoro, fora um comprimido e, com indicação dele para ela o engolir! Mas sem obedecer ficou com ele na palma da mão sem perceber a verdadeira intenção de tal solicitação, ao que ele retorquira a seguir, se não o engolia pelo menos o abrisse, daqueles com duas partes uma alaranjada e outra vermelha e redando-as inversamente, dentro de uma delas permanecia um minúsculo papel, parecendo um manuscrito enrolado com a seguinte frase: “se o engolisses nunca saberias que te amo!”

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