Órfãos de Pais Vivos
Ideias
2018-11-12 às 06h00
Manuel Alegre reapareceu na cena política portuguesa para, do alto da sua posição de senador do regime, acenar com o perigo da extrema-direita diante da intenção do Governo de Portugal deixar de considerar as touradas como um espetáculo merecedor do mesmo IVA reduzido que o nosso regime fiscal aplica a bens essenciais.
Sabemos que a política é um exercício que combina parcelas desequilibradas de racionalidade e emoção. É inequívoco que o exagero, quase absurdo, de Manuel Alegre tem uma enorme dose de emoção. Fica claro que a paixão que o político desenvolveu pelas touradas o impede de aferir da incivilidade que representa fazer do sofrimento e da tortura de animais um espetáculo merecedor de IVA excecionalmente reduzido. Que é apenas isto, e só isto, que está em causa na proposta do governo para 2019.
A formulação quase absurda de Manuel Alegre tem a virtude nos recordar uma evidência: os extremismos são efetivamente os antros onde se acumulam as frustrações reais, percecionadas ou imaginadas das pessoas que votam. Não é o IVA sobre as touradas (ou mesmo a sua proibição) que cria extremismos, mas sim a forma como individual e coletivamente reagimos às frustrações próprias da vida em sociedade.
A democracia liberal em que vivemos baseia-se na renovação permanente de acordos coletivos sobre a vida comunitária e na compatibilização desses acordos com o respeito pela individualidade e singularidade de cada um. Paradoxalmente, à medida que a sociedade nos proporciona doses crescentes de bem-estar, de oportunidades e de segurança parecemos progressivamente mais incapazes de lidar com a frustração de não ver supridas todas as nossas exatas necessidades e caprichos. É aqui reside a vantagem eleitoral dos extremismos: assentes num medo exacerbado por percepções altamente distorcidas pela imposição de agendas mediáticas fraudulentas (em que pululam as chamadas “fake news” mas também destaques desproporcionados às ideias e aos grupos radicais), os extremismos propõem a confrontação identitária como oportunidade de satisfação dessas necessidades e desses caprichos.
Voltemos a 2013, quando o parlamento dominado pela direita aprovou a co-adopção por casais do mesmo sexo. Esta medida, que Pedro Passos Coelho defendera publicamente antes de ser eleito, foi travada alguns meses depois pelo mesmo PSD que a aprovara numa das mais incríveis piruetas políticas da nossa história recente. A mentira e a incoerência de Passos Coelho nesta matéria geraram uma enorme frustração em setores significativos da sociedade, limitaram a esperança de proteção jurídica de algumas crianças e ajudaram a reduzir a confiança dos portugueses na palavra dos políticos. Seria, com toda a certeza, uma boa oportunidade para algum apaixonado como Manuel Alegre ter dito que eram estas atitudes que criavam os extremismos.
Como a história subsequente veio a demonstrar, não foi a via do extremismo que deu a resposta mais adequada à resolução desta injustiça. Em vez de acenar com o perigo do radicalismo, a frustração converteu-se em acção política: os movimentos cívicos questionaram diretamente os partidos sobre a sua posição nesta matéria e os portugueses votaram um parlamento que aprovou por maioria expressiva não apenas a co-adopção mas também a adopção por casais do mesmo sexo. O acordo coletivo sobre a nossa vida comunitária nesta matéria é hoje reconhecido por (quase) todos como uma oportunidade para uma sociedade mais justa.
O cientista político Pedro Magalhães partilhou no Twitter uma série de resultados de um estudo que coordenou em 2016 e que ilustra a crescente polarização da política portuguesa. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que os respondentes de esquerda e de direita aprofundam antipatias entre si verifica-se uma impressionante sobreposição de respostas às perguntas sobre temáticas tão diversas como “o governo deveria tomar medidas para reduzir as diferenças de rendimentos” ou “quando os empregos são poucos, os homens devem ter prioridade para ocupá-los” ou ainda “Portugal tornou-se um lugar pior ou melhor para se viver com a vinda de pessoas de outros países para cá”.
Estes dados confirmam a nossa percepção: a sociedade do bem-estar parece estar cansada de apostar na racionalidade do consenso para se polarizar no confronto emotivo em torno de matérias que geram paixão. Não vemos qualquer problema nisso desde que tenhamos a capa- cidade de reconhecer que as frustrações nunca se resolvem pela ameaça do extremismo mas antes pela necessidade de consensos políticos e sociais inclusivos e, ao mesmo tempo, respeitadores da liberdade e da singularidade de cada um.
02 Junho 2023
01 Junho 2023
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