A responsabilidade de todos
Voz aos Escritores
2021-06-04 às 06h00
Corria o ano de 2000 quando enfrentei duas turmas sozinha no meu estágio curricular na Escola Secundária Alberto Sampaio. Uma de 9ºano, aquele que era o ano terminal da escolaridade obrigatória, e uma de 10º ano. Uma de Português e outra de Inglês, a eterna dicotomia para mim, sístole e diástole. Ambas com alunos difíceis, assim para começar, meia atirada aos lobos com direito a choque frontal, ainda que com o apoio e acompanhamento das orientadoras de estágio. O último teste de uma caminhada de aprendizagens, para uma autonomia vida fora.
Lembro-me de preparar e matracar os discursos na noite prévia, como a preparação de um actor. De estender os braços para abraçar a mesa do professor para não se notar que tremiam. Tentei parecer sempre segura. Nas primeiras aulas o constan-te nervosismo nos primeiros 5 minutos que depois desapareciam à medida do mergulho na aula, na matéria, nos alunos. Naqueles pares de olhos que me caiam com admiração, alguns apenas com mais 5 ou 6 anos de juventude em relação a mim.
No meio de tudo há sempre uns pares de olhos que nos ficam mais do que outros. Tinha, como ainda hoje, por hábito passear pelos alunos para acompanhar melhor as suas dificuldades aquando da execução dos exercícios propostos. Uma explicação aqui, um incentivo acolá. Teimo sempre que conseguem ultrapassar as dificuldades se assim tiverem vontade e que estarei sempre ali para os ajudar. Passei as mãos pelas costas de um aluno, a acompanhar a voz que dizia muito bem, vês como estás a conseguir? Ergueram-se para mim um par de olhos marejados, cheios de intensidade, de carinho e de carências. Tentei disfarçar, não sabia o que fazer com aquilo. Mais até por ele. Sabia que pertencia a um grupo de malandrecos, alguns maltrapilhos, nomeadamente ele, não era o líder, longe disse, mas era aceite. Não sabia como as coisas correriam dali para a frente se fosse exposto. Mas ele era um malendreco com bom coração. Isso sabia-o. E se não tinha a certeza antes, fiquei com a certeza ali.
Na primeira oportunidade falei com o director de turma. Um professor experiente que conhecia bem alguns daqueles miúdos. Este, em particular, era filho de um pai alcoólico. Tentava sair de casa antes do pai acordar e chegar a casa depois do pai adormecer para salvar o corpo da raiva des-controlada ou de alguma noite com mau vinho. O espírito deambulava entre compa-nhias e companheiros de infortúnio. Uma tristeza profunda por trás dos olhos esverdeados que me apareciam muitas vezes sorridentes. Um rosto de anjo caído, perdi-do entre fraquezas humanas e desamparos.
A escola dava-lhe o pequeno-almoço, o almoço e às vezes o jantar. Preambulava até muito tarde pelas imediações da escola. Como exigir desenvolvimento, acompanhamento, aprendizagem? Dei o que podia dar, o estar ali, o apoiá-lo e incentivá-lo, acarinhá-lo sempre que possível sem o expor. Muito pouco, quase nada.
Aprendi, ao contrário do que pensava, que não podia mudar o mundo nem salvar os alunos do seu contexto. Tenho consciência de que, aqui e ali, tocamos alguns alunos de forma significativa, acrescentamos-lhes horizontes, mundo. Às vezes o saberem que não estão sós. Uma denúncia à CPCJ seria o mais certo para o salvar e dignificar? Não sei. Sei que morria de medo disso, não queria deixar a mãe sozinha. A mãe refém, de alguma forma, abandonada até por ele.
Mais de 20 anos passaram e nunca consegui esquecer aqueles olhos marejados por não estar habituado a um carinho. Aqueles olhos que representam tantos outros, todos os anos, todos os dias. A escola é muitas vezes uma tábua de salvação, ainda que momentânea, um lugar de alguma igualdade e de sentimento de pertença.
E é por isso que, com ou sem covid-19, continuo a passear pelos meus alunos, passar-lhes as mãos pelas costas e a abraçá-los sempre que sentir que precisam. Porque às vezes basta isto, passar uma mão pelas costas. Porque há muitos tipos de abandono, sem serem considerados negligência.
15 Março 2024
08 Março 2024
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