Correio do Minho

Braga, segunda-feira

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Uma nova oportunidade

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

Conta o Leitor

2017-08-23 às 06h00

Escritor Escritor

Susana Miranda

Lembro-me daquele dia de chuva em que fiz a mala com meia dúzia de peças de roupa e dois pares de sapatos e saí para a rua, sem nada, sem ninguém. No meu mundo existia apenas eu e o meu vício, aquela vontade enorme de consumir uma e outra vez até ficar com a sensação de que era um super herói, que podia conquistar o mundo e vencer tudo e todos! Incluindo todos os meus medos...

Tinha acabado de perder a minha casa, onde há vinte anos atrás projetei ser feliz e constituir a minha família. A minha esposa pediu-me o divórcio, já nem sequer suportava olhar para a minha cara. Os meus filhos olhavam para mim com um misto de pena e vergonha, no entanto eu era incapaz de me aperceber disso. Nada mais me importava a não ser eu e o meu mundo. Acabava de perder tudo o que me restava e, mesmo assim, dentro de mim não existia nada, a não ser uma ansiedade incontrolável e uma necessidade de “fazer” dinheiro. O que iria vender a seguir? Já não tinha emprego, carro, relógios, computador, telemóvel... Até as peças de bronze que herdei do meu pai eu vendi!

Uma dose de cocaína era o suficiente para me aliviar durante umas horas, ou melhor, durante uns minutos! Mal terminava, no minuto seguinte já estava a pensar em consumir mais e mais. O meu desejo era galopante e parecia insaciável! Abandonado na rua, dediquei-me a arrumar carros. Algumas pessoas fingiam que não me viam, outras olhavam para mim com compaixão e lá me iam dando umas moedinhas que eu religiosamente ia juntando, hora após hora, para trocar pela minha dose... Aquela que me iria fazer esquecer de tudo, incluindo desta minha nova condição.

Fui comendo os restos que os restaurantes deitavam ao lixo no final do dia e bebia a água dos chafarizes públicos. A minha cama passou a ser o banco do jardim, mas apenas durante três a quatro horas por noite. O sono passou a ser uma coisa escassa na minha vida, assim como o apetite, chegando a pesar cinquenta quilos!
Vendi os dois pares de sapatos que ainda tinha e as poucas peças de roupa, e assim fiquei sem nada. Nos momentos em que estava ciente desta minha realidade chorava como se fosse uma criança, desesperado por um abraço e uma palavra de consolo.

Mas quem iria olhar para mim? Eu fui o único responsável por ter chegado até aqui! Fui negando todas as ofertas de ajuda que tive: a minha mãe, o meu irmão, a minha esposa... Obviamente que todos se cansaram de mim e me viraram as costas. No meu íntimo eu sabia que era um falhado, que não conseguia suportar a vontade enorme que tinha de consumir, contudo neguei sempre. Dizia que tinha tudo controlado, que esta fase iria passar.

Depois de um ano a viver na rua, percebi que a tal fase nunca mais iria passar. Cada dia que passava era uma luta pela sobrevivência. Todo o dinheiro que ganhava a arrumar carros ou a pedir esmolas era inteiramente gasto em cocaína. Passei a ter cada vez mais alucinações, decorrentes das duas horas de sono por dia e da droga. Comia apenas uma vez por dia, sempre que os voluntários que apoiavam os sem abrigo me encontravam numa esquina qualquer da cidade.

Não me lembrava sequer da última vez que tinha tomado banho, até porque nem sequer tinha roupa lavada para vestir. Confesso que nestes últimos dias não parava de pensar em por fim à minha vida. Mas, até para isso eu era um cobarde! Eu sabia que estava doente, que precisava de ajuda, porém era incapaz de o admitir. Maldito orgulho! Maldito vício que consegui dominar-me!
Na noite do dia 24 de Dezembro, véspera de Natal, as ruas da cidade estavam desertas, as salas de jantar de quase todas as casas estavam iluminadas, ouvia-se a música de fundo alusiva à época e eu tiritava de frio junto a uma entrada da estação de metro, sozinho e já sem dinheiro no bolso. Comecei a ouvir uns passos que se iam aproximando cada vez mais de mim...

Quem haveria de estar aqui numa noite destas? Não havia ninguém na rua! Certamente algum sem abrigo como eu... Ou alguém que me iria tentar assaltar ou fazer mal... No chão vi a sombra de um homem alto e robusto, estanque à minha frente. Levantei a cara, pensando que estava a ter mais uma das minhas alucinações. Claro que não podia ser... Comecei a rir-me sozinho, pensando que estava a ficar senil. Mas, ouvi a voz dele e era exatamente igual à que conhecia, estava a estender-me a mão e a pedir-me para ir com ele embora dali! Queria ajudar-me, dar-me uma nova oportunidade e provar-me que era possível curar-me e voltar a ter uma vida normal. O meu irmão tinha vindo buscar-me... Não era uma ilusão, era real! Eu pude comprovar isso quando senti o abraço forte dele no meu corpo magro e inerte! As lágrimas dele eram quentes, aqueciam a minha pele gelada... Nessa noite voltei a sentir o meu coração bater.

Hoje estou aqui sentado no banco do jardim rodeado de árvores e flores de várias tonalidades, apreciando os primeiros raios de sol da primavera e comprovando que vale a pena viver e tentar ser feliz. O meu irmão vai aparecer no horário habitual das visitas, como tem feito todos os dias, desde que fui internado nesta casa de recuperação. Tomámos juntos uma água com gás ou um sumo de laranja natural e falamos sobre trivialidades... futebol, política, comida, o tempo, a nossa família... Aos poucos fui recuperando o meu peso e o meu aspeto. Não consumo há cerca de quatro meses. Tenho consciência de que esta irá ser a minha luta diária, mas é uma luta que quero e vou vencer!

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