Um batizado especial
Ideias
2021-10-16 às 06h00
A integração europeia sempre se fez com pequenos (ou, por vezes, menos pequenos) tropeções, sobressaltos, aparentes “crises inultrapassáveis” que acabaram invariavelmente por impulsionar o aprofundamento (ou, momentaneamente, a consolidação) da própria integração. Desde os primórdios (por exemplo, “crise da cadeira vazia”, em 1966) que a integração vai sendo construída assim, em permanente busca de equilíbrios políticos ou, como referia Jean Monnet, dando um passo atrás para (oportunamente) avançar outros dois para a frente!
O tropeção maior terá sido - excluindo a questão da pandemia que nos assolou(a) - o Brexit. O pós-Brexit imediato (a prazo, ainda muitos engulhos surgirão, seguramente), acabou por se traduzir num relativo reforço da união existente entre os 27 Estados membros e não numa desagregação, como muitos vaticinaram.
Deverá ser, assim, neste contexto histórico-político de evolução não linear que deveremos perspetivar o recente caso (grave) resultante da tomada de posição do tribunal constitucional da Polónia. Relembre-se que aquela jurisdição veio, na sequência de um pedido efetuado pelo próprio governo polaco, contestar um dos princípios estruturantes e existenciais do funcionamento da ordem jurídica europeia e, consequentemente, da integração: o princípio do primado do Direito Europeu. Sem entrar, agora, em tecnicidades desnecessárias, facilmente o Leitor compreenderá que se o Direito da integração não for efetivo em todas as suas dimensões, se os Estados membros puderem, consoante os respetivos interesses circunstanciais, excetuar a aplicação das regras europeias em favor de regras internas (mesmo constitucionais), então, a uniformidade da aplicação do Direito europeu é posta em causa e a própria integração poderá tornar-se inexistente. Haveria uma efetiva “desintegração” (muito mais do que aquela que resulta de declarações e proclamações políticas nacionais anti-europeias, habitualmente inconsequentes!). Creio que progressivamente o polémico e tendencialmente autoritário governo polaco - que tem vindo a desafiar, nomeadamente no que respeita à organização, independência e controlo do poder judicial, a vigência do Estado de Direito na Polónia - acabará por se conter. E, sendo assim e sem que, sob o ponto de vista político, ninguém perca irremediavelmente a face, a integração europeia ultrapassará este percalço – de resto, em benefício, desde logo e imediatamente, dos próprios cidadãos polacos que não pretendem qualquer tipo de afastamento ou risco de “desintegração” da Polónia.
Entre nós, a atualidade política tem, nestes últimos dias, sido marcada pelo processo de elaboração da Lei do Orçamento (para além de possíveis redefinições, em termos de lideranças, de alguns partidos). Anteontem, a imprensa deu conta de uma situação que, embora até então pouco debatida na opinião pública interessada, fez, no entanto, soar alguns alarmes, algumas inquietações que se prendem, realmente, com o respeito pela legalidade europeia instituída. Refiro-me à consagração (proposta) de perdão de parte da dívida da CP, no montante de 1,8 mil milhões de euros. Um número demasiado grande para passar incólume numa discussão política orçamental.
E, naturalmente, tal perdão projetado (mesmo sabendo-se da situação de extrema dificuldade financeira da CP), implicaria a certeza, por parte do governo português, de que nenhuma regra ou princípio do Direito europeu poderia perturbar a intenção de sanear, de resgatar a CP. Não digo que essa certeza não tenha sido procurada, não tenho informação sobre tal dossier. De resto, acho muito estranho, numa lógica de vivência e de debate democráticos que uma decisão política daquele teor não tenha aparentemente merecido atenção, divulgação e debate públicos prévios à respetiva consagração, em forma de proposta orçamental. Quanto mais não fosse, o caso TAP e as suas vicissitudes judiciais (ainda em curso) no Tribunal do Luxemburgo, a isso obrigaria. Aquele perdão de dívida, em abstrato, poderá configurar-se com um auxílio público proibido, subsumível ao artigo 107º do Tratado sobre o Funcionamento da UE.
Não sei se o será, em concreto; não sei, neste momento, que enquadramento poderá merecer, à luz das exceções a tal proibição - também elas constantes da mesma regra/princípio do Tratado.
No entanto, a primeira reação conhecida de “fonte” governamental, balbuciando qualquer coisa relativa à existência, ou não, da dívida antes ou depois da CP ter sido concessionada, foi equívoca e indiciadora de que ninguém teria pensado a sério – ou seja, com consideração pelo Direito europeu - no assunto. Será?! Diria que seria impossível tal suceder. Porém, aquele tipo de reação evasiva, inconclusiva e desvalorizadora dos princípios e das obrigações decorrentes da integração, também contribuirá em alguma medida para que não se leve mesmo a sério a importância de uma efetiva União de Direito….
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