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Zorro

Premiando o mérito nas Escolas Carlos Amarante

Conta o Leitor

2022-07-11 às 06h00

Escritor Escritor

Texto Ana Maria Monteiro

Recordo-me que crescia feliz, como quase todas as crianças crescem, sem nunca pensar nisso. Queria ser grande, ser como “os grandes”. Todos quería- mos, nessa época em que ser criança era sinónimo de “não ter voto na matéria”, estar calado à mesa, cumpri- mentar qualquer desconhecido amigo do pai ou da mãe, com a maior cortesia; enfim, tudo era “uma seca”, um deserto que todos tínhamos de atravessar para chegar à tão desejada idade adulta, aquela em que, aparentemente, tudo era permitido.
Eu nem sonhava que vivia em ditadura. Não sabia o que isso era, nunca tinha ouvido a palavra, mas se alguém ma tivesse explicado, certamente teria pensado que os ditadores do mundo eram os pais, todos os pais que conhecia.
Um dia o Zorro morreu. Morreu, assim, sem aviso, estava a dormir e não acordou mais. Eu chorei. O Zorro era o meu gato, o nosso gato. Era um pouco mais velho que eu. E morreu de velhice. Chorei muito. Nem queria chorar, pois não servia de nada, queria era trazê-lo de volta, voltar a afagá-lo, a tê-lo no meu colo, brincar com ele, ouvir o seu ronronar de satisfação, repetir-lhe o quanto a amava. Percebi o peso do “nunca mais”, do definitivo; que o passado perdura, mas o futuro pode acabar a qualquer momento. O futuro do Zorro terminara. E eu não estava apenas inconsolável, sentia-me, sobretudo, incon- formada, incapaz de aceitar.
Foi então que ouvi, pela primeira vez, um discurso sobre essa história de crescer. O meu pai, na beira da minha cama, sentou-me ao colo, aconchegou-me nos braços e conversou comigo por muito tempo, com calma, doçura, paciência.
Disse-me muitas coisas, ensinou-me muito, falou-me que todos temos de crescer, e que o aprendiza- do da morte faz parte desse processo que é duro mas gratificante. Também falou que eu iria continuar a crescer, mesmo depois do meu corpo alcançar a altura definitiva. Disse-me que o crescimento dura o tempo todo de uma vida, que ele próprio continuava a crescer todos os dias e que ninguém, mais do que eu, lhe ensinara ou fizera crescer tanto.
E o meu sonho de ser grande foi esmorecendo enquanto ele falava.
Pensando bem, talvez fosse preferível continuar assim pequenina para sempre, ao colo do meu pai, escutando a sua voz doce e grave, suavemente acompanhada pela batida ritmada do coração, bem ali por baixo do meu ouvido encostado no seu peito.
Ele afagava os meus cabelos. E a certa altura começou a falar do Zorro e a recordar as suas histórias e como o haviam encontrado, bebezinho ainda, na rua, sozinho.
Bem antes de eu nascer. Contou muitas coisas sobre ele, coisas que desconhecia: como era assustadiço e medroso, como lentamente foi crescendo ele também e como me “adoptou” desde o dia que nasci.
A certa altura já não havia mais lágrimas, apenas risos e alegria nostálgica em memória do nosso doce gatinho, chamado de Zorro devido a uma tira negra na zona dos olhos e que mais parecia uma mascarilha.
Ficámos muito tempo ali. Por fim, chegou a hora do jantar.
A minha alma lavara-se e revigorara-se, tinha o Zorro dentro de mim, para sempre. Ainda cá está. Sem o saber, cresci muito nesse dia.
Passaram muitos anos, tantos que prefiro nem dizer. Ontem à noite, da mesma forma e pelas mesmas razões, o meu pai foi juntar-se ao Zorro.
Nunca somos suficientemente crescidos para perder os nossos pais com serenidade. Choro o meu pai, como chorei o Zorro.
A dor é mais madura, o sofrimento mais profundo.
E eu, eu sou quase velha. Mas o que me apetece mesmo, o que sinceramente desejo, é sentar-me ao colo do meu pai e ouvir a sua voz, embalada pelo bater do seu coração (agora parado), consolando-me, explicando-me os porquês de tudo e rindo comigo das suas próprias histórias de quando era vivo e jovem.
Ah! Falta-me tanto por crescer.

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