‘Março com Sabores do Mar’ com exposição em Esposende
2021-07-12 às 16h04
Arrumam-se os Passados para que neles tropecemos e lhes confiramos sentido, ou eles a nós. A lógica que vivemos não nos pertence em exclusivo. Que espera velha batina de um frade lóio encadernada de esquecimentos? Primeira página do sétimo capítulo. Todas as semanas aqui pequenas pinceladas literárias deste novo livro que pode ver em breve numa livraria perto de si!
7
Vestiram-me, salvo seja, com o que havia disponível, e tanto era que me foi proposto escolher entre uma solução mais consentânea com o meu estado, e uma combinação civil, composta por umas calças aprumadas de riscado grosseiro, peça que emparelhava com uma camisa de peitilho de algodão cru, granuloso, de um creme envelhecido, castanho-amarelado. Optei a olho, sem segredo, por uma batina de negro regulamentar, remendada e desgastada pelo lavar recorrente de muita nódoa, pisada a sabão agreste e esfregada das bodeguices à esfola dos cotos. Batina de negros vários, por conseguinte, de onde em onde o original, mas de um negro degradado, esmaecido, pelo maior do pano. Medalhas tinha, e muitas, que da última vestidura não saíra recomendação para lavagem exigente, ao que conjecturei, tão-só para que a refrescassem e arrumassem na ponta contrária do varão das indumentárias da igreja, que de lá Vicente houvera de a ter retirado, por súbita inspiração, para que me viesse em serviço.
– Veja o frei João o que melhor lhe cai, que púrpuras e rendas de prioste não lhe descubro para empréstimo.
– Rendas que não cobro, que não devo, que tampouco envergo, bom Vicente, e de graça em graça lhe desejo que o dia lhe sorria.
– Não menos a si do que a mim. Já reparou que desanuviado está o céu para o lado do mar?
Os primeiros longes que se enxergam em dia que clareia: – Pegue o Sol em força, que os hábitos num instante se fazem secos, logo nos vendo de volta ao caminho.
– Ainda me pesarão por uns dias, digo eu, que o seu combalido não arrebita só pelo espreguiçar de um solzinho. Mas se ontem choveu, valha a Deus!
– Pois não, realmente – complemento, desviando o olhar para as roupas que me preparara. Pressinto que o traje paisano seria do seu enxoval arcado, e que melhor talvez não tivesse para festa ou para envergar com orgulho no lance da cerimónia derradeira.
– Que sujinha ela não está! – exclama, antes que eu abrisse a boca, vivamente surpreendido, com preocupações que não lhe adivinhava. – Nem tinha reparado. Sabia-a pendurada onde a fui buscar, mas não a imaginava nesta apresentação sebosa. As tiras de naftaleno que lhe vi pregadas, e as saquetas de alfazema, levaram-me a supor que estivesse em condições, apenas parada e ignorada, porque velha e gasta.
– Acredito que a tivessem lavado – digo para o descansar –, embora sem o costumeiro esmero. Apenas para a livrar de cheiros e pendurar, porque se esfarrapasse, se às condecorações lhe chegassem com afinco.
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